Se eu soubesse

Se eu soubesse

Momento para relaxar...Meu livro.... Se eu soubesse...



SE EU SOUBESSE
O dia começou bem difícil, uma verdadeira batalha logo no café da manhã, a viagem estava marcada há dias e ele na última hora diz que não quer ir!Fico em pânico, só de pensar em deixar o Fernando em casa sozinho e ir viajar, tá certo que ele já tem 20 anos, mas é como se fosse um menino!Não quero que fique sozinho, acho perigoso!Não vou ficar sossegada!Isso é coisa de mãe, vamos ficar fora o feriado inteiro, são 04 dias longe e isto está me torturando!Vou tentar mais uma vez.
-Oi, fala mãe!
-Filho! Tudo bem, liguei pra convencer você a viajar conosco. Não quero ir só com o seu pai, estou com o coração apertado, vamos com a gente! É só 04 dias, vai se divertir!
-Mãe, não quero ir, pára de insistir, a Paula não gostou da idéia de passar o feriado com vocês, na
casa dos seus amigos, não vai se sentir a vontade. Vão vocês! Por que está tão insistente!
-Ai, filho, não sei, só queria que fosse com a gente! Minha vontade é fazer como quando era pequeno, colocá-lo na cadeirinha, prender o cinto e encerrar a história.
-É, ainda bem que não pode mais, fica tranqüila, vou ficar bem! Talvez a gente dê um pulinho na praia, deixa as chaves no lugar de sempre, vou falar com a Paula e com o pessoal se eles quiserem a gente desce hoje mesmo!
-Tá bom, se você quer assim, fazer o quê !
Não foi uma boa idéia sair naquele horário, parece que todo mundo resolveu antecipar a saída para o feriado, o trânsito esta péssimo! O calor, mesmo com o ar condicionado ligado está insuportável.
• Ainda bem, que depois do pedágio o trânsito melhorou
um pouco, logo vamos chegar no sítio.Ao sair da estrada principal pegamos uma estradinha bem sinuosa, daquelas que só passa um carro por vez, sem asfalto, só terra, pedra e mato.A paisagem compensa os solavancos, de longe é possível enxergar a represa, conforme vai subindo o morro fica mais deslumbrante, parece que foi desenhada com um pincel de tão perfeita as suas curvas. Uma ave cruzou o nosso caminho fazendo muito barulho, não dá para saber se estava nos dando as boas vindas, ou nos mandando embora. O sítio já está perto, faltam apenas alguns quilômetros, de longe, parece que está suspenso sobre as árvores, no fim da estrada já é possível ver os nossos amigos que acenam alegres.
• É uma sensação boa chegar na casa de alguém que se sente feliz com a sua presença. Este lugar nos dá a sensação de estarmos na nossa casa.
• -Oi, que saudades! Está linda! Estávamos esperando vocês! Fico tão feliz quando vêm aqui, é algo inexplicável!
• Márcia, pára tô ficando sem graça!
• -Mas é verdade, vocês demoram tanto pra vir, que quando chegam fico assim! Entra, vamos tomar café, depois descarregam as malas. O quarto já está arrumado. Deixei tudo pronto pra minha amiga!
• -Estou tão feliz por estarem aqui!
• -Marcia, deixa eles se instalarem, depois você abraça, beija, faz o que quiser.
• -Tá bom amor! Vai lá amiga se instala, depois volta.
A mesa do café da manhã estava preparada na varanda, a nossa espera, o arranjo com girassóis no centro da mesa estava lindo combinando com a toalha, a vista de tirar o fôlego, a visão era tentadora, bolo de fubá, pães, geléia, aquele queijinho fresco, pão caseiro feito no forno a lenha, manteiga, comprada em uma fazenda próxima do sitio, estavam irresistíveis. A Márcia sabe como ninguém receber visitas, você sente que é amado!Deus, obrigada por colocar nas nossas vidas estes amigos tão especiais!
• Mas tem alguma coisa me incomodando, o meu coração está triste, não consigo relaxar, parece que algo ruim vai acontecer. Nem descarreguei as malas e já tentei ligar no celular do Fernando várias vezes, o sinal é horrível, é necessário ficar
na parte mais alta do sítio e torcer para conseguir.
• O nosso quarto ficava na parte de trás da casa, a Márcia e o Ricardo fizeram nos fundos um quarto para os hóspedes, para que tivessêmos mais privacidade. A cama de madeira, a colcha branca com detalhes lilases, muitas almofadas, o criado mudo com um abajur, os quadros na parede, tudo exalava o amor com que ele foi preparado para nos receber.
• A decoração romântica do quarto, sinalizava que aquele seria o início de um fim de semana inesquecível.
• Faz tempo que eu e o Paulo não viajamos sozinhos, vamos aproveitar e namorar um pouco.
• A Márcia faz um roteiro extenso para nos divertirmos, é tanta atividade que é impossível fazer a metade delas! Ela é assim mesmo, acelerada. Planeja tudo com antecedência, faz projetos, depois muda tudo de última hora.
• O almoço seria por minha conta, o cardápio, o mesmo de sempre, todas as vezes tinha que ter galinhada, pra começar a programação. Até o frango já estava cortado na pia. Deixei as malas no quarto, nem arrumei, já estava tarde, comecei a preparar o almoço. Ela sempre dá um jeito de fugir quando estou na cozinha, diz que não quer aprender, que só eu sei fazer, é nada, é só pra me agradar, ela sabe que adoro cozinhar.
• Todo mundo em volta da mesa esperando, ansiosos, é uma cena hilária, parece que nunca comeram galinhada. O Ricardo comeu tanto que achei que ia passar mal depois do almoço.
• O sol quente, excesso de galinhada, o cansaço da viagem, era o convite perfeito para uma soneca depois do almoço. Resolvi tomar um banho antes, a porta do banheiro ficou aberta e pelo vidro do box conseguia ver o Paulo deitado na cama olhando enquanto eu estava no chuveiro, não esperou nem terminar o meu banho, foi entrando embaixo do chuveiro todo animado, com muitas intenções!Acho que a soneca vai ficar para depois.É impressionante como o tempo, são mais de 22 anos juntos, não conseguiu diminuir o nosso desejo, o
nosso amor, o sexo é tão bom quanto há 20 anos atrás.Sentir as suas mãos deslizando pelo meu corpo, o coração acelera, os batimentos ficam mais fortes, a emoção é a mesma.Os olhos demonstram o desejo incontrolado parecemos adolescentes namorando escondidos, sem fazer nenhum barulho. O burburinho das crianças na piscina, não conseguiu desviar a nossa atenção, acho que a atmosfera romântica do quarto contribuiu para o desfecho daquela tarde.O sono foi chegando e dormimos a tarde inteira, quando acordei já estava anoitecendo.
Lembrei mais uma vez de ligar para o Fernando, agora não era o sinal, o celular chamava e ele não atendia. Onde será que este menino estava?
• O programa daquela noite era um passeio até a cidadezinha Santa Isabel, dar uma voltinha na praça, olhar o coreto, tomarmos um sorvete, segundo a Márcia era maravilhoso. A escolha do sabor foi uma festa, era tanta opção que ninguém sabia o que experimentar. Tomei um de graviola e depois mais outro de passas ao rum.As crianças preferiram aqueles que você pega um pouquinho de cada, depois coloca um monte de confetes coloridos, e cobre com uma imensa camada de cobertura de chocolate. Irresistível!
• Tomar um sorvete na praça, olhando as luzes que brilhavam sobre a água do rio, jogar conversa fora, pra gente que vive na cidade grande é o melhor dos passeios, aqui é sempre tão cheio de gente!
Quando íamos embora, tentei de novo ligar para o Fernando, estava inquieta, nos últimos 10 minutos eu já havia ligado pelo menos umas 04 vezes e nada, ninguém atendia.Onde será que ele estava?Podia pelo menos dar uma ligadinha, ele sabe o quanto fico preocupada, sem notícias. O Paulo está bem tranquilo, nem se preocupa!Como queria ser assim, despreocupada.
-Pára de ligar para o Fernando. Dá um tempo! Está deixando todo mundo preocupado. Ele está bem! Você só pensa bobagem! Se tivesse acontecido alguma coisa a gente saberia. Noticia ruim chega depressa!
-Eu estava pensando em ligar para a mãe da Paula, saber se ele está lá.
-Tá, tá bom, estou ficando chata, depois eu ligo!
Desliguei o celular, mas não conseguia relaxar.
O jogo que começamos para passar o tempo não estava surtindo efeito, a cada minuto sem noticias, parece que ia aumentando a angústia. Depois que o Paulo brigou comigo, o clima ficou meio pesado, a gente não briga nunca na frente dos outros, mas reconheço que ele tem razão estou agindo como uma mãe boba, daquelas que ficam o tempo inteiro no pé dos filhos perturbando, sem dar uma folga, mas não sou assim, não estou me reconhecendo. Acho que é porque estou com um pouco de ciúmes porque o meu filhinho preferiu ficar com a namorada. Coisas de mãe!
Fomos deitar logo em seguida, e quando um pouco antes da meia-noite o celular tocou, já atendi chorando.
- Alô, é a dona Mara, mãe do Fernando Rodrigues de Sá?
-Aqui é da Polícia Rodoviária Federal!
FERNANDO E PAULA
- Alô,Paula?É o Fernando!Até que enfim consegui convencer a minha mãe da gente não ir com eles para o sítio. Inventei um monte de histórias, coloquei a culpa em você, falei que não ia se sentir a vontade no sítio, que não conhecia ninguém. Ela não gostou muito, mas acabou concordando.Falei para deixar as chaves da casa da praia, que talvez a gente fosse descer com o pessoal, não disse nada sobre irmos sozinhos, ela não ia entender os nossos planos para o final de semana. Quero que seja inesquecível!
-Ai, Fernando, estou tão preocupada! Se a minha mãe descobre que vou para praia sozinha com você, sem os seus pais, ela me mata!
-Ah, mais vai valer a pena a nossa mentira, é por uma boa causa!
-Fe, será que estamos agindo certos?Estou em dúvida, cheia de conflitos, esquecer de repente tudo que aprendemos desde criança na igreja, para esperarmos o nosso casamento, não sei se estou preparada!Este monte de mentiras para minha mãe, que nós vamos viajar com a sua família. Não estou acostumada a mentir, sempre falo a verdade!Estou em pânico, só de pensar, não sei o que fazer! A minha mãe nem sonha que eu possa inventar uma mentira destas. Pensa o que vai acontecer se o pastor descobrir isto! Não quero nem pensar! Estou em pânico!
-Paulinha, calma!Também não precisa ficar desse jeito! A gente vai e se rolar, rolou, se não, não vou forçar a barra, vou respeitar o que você decidir. Passei na farmácia comprei preservativos, peguei algumas coisas no mercado, porque a gente vai chegar lá à noite e não tem nada aberto.
-Tá bom amor, agora deixa eu trabalhar, antes de sair, te ligo!
-Beijo, tchau!
-Ai Jesus, o que que eu faço?Sei que o senhor fala na sua palavra sobre esperarmos a hora certa, que o sexo é bom depois do casamento, mas eu e o Fernando não podemos casar logo, a gente tá namorando faz um tempão e não estamos conseguindo esperar!
Estou tão incomodada com este monte de mentiras para Mara, para minha mãe, elas não vão nos perdoar!Será que o senhor entende?Estou tão angustiada!Não sei o que fazer.
O celular toca novamente:
-Fala Fernando o que é agora?
-Oi filha! Não é o Fernando, é a mamãe, ele te ligou agora?
-É, queria falar da viagem, está ansioso!
-Ele vai pegar você aqui em casa, ou quer que eu te levo na casa dele?
-Assim eu converso um pouco com a Mara, para ela tomar conta de você e não ficar pensando que eu não me preocupo com minha filha.
-Não precisa mãe, a Mara te conhece, se não ela pode achar que é você que não está confiando que ela vai cuidar como se eu fosse filha dela.E tem a loja, você não ficar aí até tarde?
-É talvez tenha razão, mas vou esperar você para te dar um beijo, e falar com o Fernando, para terem juízo e não quebrarem a minha confiança!O seu pai vai ter que trabalhar amanhã, se não ia com vocês, a Mara já me convidou um monte de vezes.
-Ah tá bom, da próxima vez você vai, e não precisa se preocupar, não confia em mim?
-Confiar eu confio, mas também já tive 18 anos e sei como é estas coisas.
-Tá bom mãe, preciso trabalhar ! O meu chefe já está me olhando de cara feia, faz um tempão que estou no telefone.
-Não precisa fazer janta, faz só um lanchinho que a gente come com você antes de ir.
-Beijo, tchau!
Os ponteiros do relógio parecem que pararam, vai dar meia-noite e não dá 18h00, não vejo a hora de buscar a Paula e irmos para praia, este vai ser um fim de semana único, é espero que ela não fique com muita frescura e dá pra trás, estou esperando por isto há tanto tempo.....
-Não vejo a hora de ir buscá-la.Tomara que mãe dela não esteja em casa, nem fique embaçando, assim não preciso mentir para ninguém mais.E a Rute não é nada boba!Se ela começar a me fazer perguntas, vou me enrolar todo!
Ainda bem que hoje estou de folga, assim posso ir buscá-la mais cedo, antes vou passar no posto, abastecer o carro, dá uma olhada na água, nos pneus e já vou levar as malas, de lá a gente vai, só não posso deixar a mãe da Paula ver as minhas bagagens, se não vai ficar desconfiada!
Vou pegar uns lençóis e cobertores novos para levar, depois falo para minha mãe que foi por precaução, não sabia se os que tinham lá estavam limpos, não vou correr o risco de estragar a noite, por causa de alguns lençóis com cheiro de mofo.
-Bom, tudo pronto!Agora é só buscar a minha princesa!
-Amor? Pode vir me buscar, já estou liberada!Onde você está?Em casa?
-Surpresa!Já estou aqui na porta, faz um tempão!
-Nossa, Fernando! Como você é ansioso! Não dava para esperar, eu ligar?
-Não aguentei ficar em casa!Você trouxe as suas malas ou vamos ter que ir na sua casa?
-Vamos ter que ir em casa, minha mãe está nos esperando, nem foi fechar a loja!
A cidade está fervilhando, véspera de feriado na cidade, gente andando de um lado pra outro, sem rumo. Acho que Deus tem a mesma sensação que temos ao olhar um formigueiro!
-Mãe, cheguei!O Fernando está aqui, faz companhia para ele, enquanto pego as minhas bolsas!
- Oi, Fernando, tudo bem?
- Tudo, Rute!
-A Paula não falou se a Mara pediu para levar alguma coisa, roupa de cama, toalhas.
-Não, não precisa, na casa tem tudo e comida, já passei no mercado e comprei algumas coisas, o que faltar a gente compra lá, minha mãe sempre faz isso. -Tá bom, então, dá próxima vez que vocês forem vou junto. Deixa o tempo esquentar mais um pouco!
-Paula, vamos!Se não vai ficar tarde para descermos.
-To indo, só vou escovar os dentes e dar mais uma última olhada para ver se não esqueci nada.
-Você pegou o protetor e o repelente?Lá sempre tem pernilongos e mosquitos.
-Filha vai com Deus, toma muito cuidado com a água, cuidado com trânsito, cuidado com objetos que você leva para praia, para não ser assaltada!
-Mãe pára, desse jeito não vou querer nem ir mais, parece que estou indo para forca!
-Desculpa, filha é que estou um pouco apreensiva, você nunca vai viajar sozinha, sem nós, estou triste, tenho que admitir que a minha princesinha, agora é uma moça, não quer mais viajar só com a mamãe!
-Você parece boba, e eu gosto muito de viajar com você, é só um fim de semana !
-Me dá um abraço bem apertado, um que vai aguentar até você voltar.
-Mãe você é tão boba, me trata como se eu fosse um bebê!
-Vamos Paula!
-Tô indo!
-Mãe, deixa um beijo para o papai, diz que eu o amo e que não vou esperar por ele, se não fica muito tarde!Assim que eu chegar lá eu te ligo.
-Liga mesmo!Não vou conseguir dormir sem saber se chegaram bem!
-Vocês podiam ir outro dia, a metereologia disse que vai chover todos os dias!
-Tá bom a gente vai com chuva, sem chuva, não fica fazendo a gente desistir! Beijos! Não esquece de dar o meu beijo pro papai!
-Tchau!
-Paula, cuidado com a água, não vai abusar, o mar é perigoso, ainda mais com este tempo fechado.
-Mãe tá chovendo aqui, o tempo na praia não é o mesmo, pode deixar que vou tomar cuidado.
-Você pegou um agasalho, pode esfriar na estrada.
RUTE
-Que saudades de quando a Paula era pequena e só saia comigo, não consegui digerir esta estória dela ir viajar com a família do Fernando. Eu sei que eles namoram há bastante tempo, que é um moço bom, está na igreja, a família dele também é muito legal, mas estou angustiada. Não queria que ela tivesse ido!
-Nossa, Rute relaxa! Até terminar o feriado você vai se consumir de preocupação, ´não vai acontecer nada, você não confia nela?Ela é uma boa menina, sempre obedeceu as nossas ordens e além disso o pai e a mãe do Fernando vão estar lá, vão tomar conta deles.O Paulo dirige com muito cuidado, eles vão com um carro só!
-É acho que estou me comportando como uma boba,
vamos dormir que amanhã você vai levantar cedo e é o meu dia de abrir a loja!
Apaguei as luzes do abajur, e em meio aquela angústia toda adormeci.
Quando por volta da meia noite o telefone tocou, eu levei um susto, quando consegui atender o telefone, estava tremendo, apavorada!
-Alô, Paula?
-Dona Rute? A senhora é a mãe da Paula Vieira de Melo?
-Aqui é da polícia Rodoviária Federal!
ILHA BELA
A estrada que vai para Ilha Bela, no litoral norte de São Paulo, é de uma beleza estonteante, as curvas perigosas não conseguem apagar as belezas naturais daquele lugar, é uma imensidão verde que não tem mais fim, o limite de velocidade de 60 km por hora quase não incomoda, e com a estrada de mão dupla, extremamente perigosa, as ultrapassagens são quase proibidas, a única opção é ir devagar apreciando as belezas. De repente no meio do nada, surge uma imensa cachoeira, com aquela água branquinha, e parecendo um rio de espuma, vem descendo o morro todo imponente e nós pobres mortais, ficamos extasiados diante de tanta beleza, a vontade é passar por cima das árvores e ir caminhando até lá, deitar
naquelas pedras e deixar a água gelada, refrescar o nosso corpo, parece tão perto, a impressão que dá, ali da estrada é que se esticar o braço consigo alcançar as suas águas geladas.
Quando vai chegando mais perto da cidade, são as praias que vão aparecendo depois de cada curva, de cada subida, que nos deixa sem fala.Você fica apreensivo esperando a cada curva a surpresa que está por vir.Dá vontade de ir parando o carro em cada uma daquelas praias. Estamos na Mogi Bertioga. Ainda falta um pouco para chegar em Ilha Bela.
-Nossa! Estamos viajando há tempo e parece que não chega nunca, estou ficando com medo, esta estrada é tão escura e perigosa, estou me arrependendo de ter vindo hoje, a gente podia ter dormido e vindo de manhã, com a luz do
dia o caminho todo não ia ficar tão perigoso!
-Paula, relaxa!Estou acostumado a viajar por aqui a noite, é só ir devagar que não vai ter problema nenhum, tenta dormir um pouco, que logo chegamos!
Acho que a Paula está com pouco de receio de chegar na casa sozinha comigo, ela está fazendo o possível para não se descontrolar, mas consigo sentir o quanto ela está nervosa e não quer demonstrar!
Ela parece uma princesinha dormindo. Minha princesa, quero ficar velhinho e continuar amando a Paula como amo hoje. Quero estar para sempre ao seu lado. Ter muitos filhos, acho melhor não, pelo menos uns dois, seria legal se fosse um menino e uma menina, um que se parecesse comigo e outro com a Paula. Olha eu, fazendo planos para o futuro, nem
perguntei se ela vai querer ter filhos. Acho que sim, ela adora crianças, não é possível que ela não queira ter os nossos pimpolhos. As nossas mães aguardam ansiosas estes dias. Vou ligar pra elas daqui e falar assim:Estamos fabricando os netinhos o que vocês acham?
-Vão cair dura as duas. Elas nem sonham com a nossa decisão, acho que foi bem acertada.
A gente já tem um relacionamento sério há tanto tempo, essa conversa de esperar o dia do casamento pra ter sexo, é uma bobagem. Não temos
uma vida promíscua. Vai ser um relacionamento só nosso, vamos nos casar assim que me formar. A Paula sabe que tenho responsabilidades. Faço faculdade, trabalho, não tem porquê ela ter receio de que eu vá abandoná-la depois que a gente transar. Ela é a mulher
que escolhi pra casar. Só não vai ser agora. Mas assim que for possível, vou fazê-la minha esposa. Como tudo tem ser feito de acordo com as vontades da Paula, os seus sonhos, ela planeja isto com todos os detalhes, já programou tudo. Quero muito fazer a minha princesa feliz. Uma família abençoada por Deus.
FERNANDO
O culto já havia começado, os louvores já tinham terminado, quando olhei para trás e vi aquela família entrando na igreja, achei que eram visitantes, porque nunca os tinha visto na igreja e neste momento o pastor parou de falar e apresentou a todos os novos membros, haviam se mudado para cidade, há pouco e iam congregar conosco, nem ouvi o que ele dizia, fiquei parado, sem reação, olhando para a filha do casal, que menina linda! Alguns dias depois nos encontramos por acaso, indo para a sala dos jovens adolescentes e aproveitei a oportunidade para me apresentar, já fui fazer as honras da casa, apresentei a Paula, para turma toda, e
daquele dia em diante, nunca mais nos separamos, já se passaram 06 anos, parece que foi ontem que a vi entrando na igreja pela primeira vez, acho que me apaixonei naquele momento.
A Paula no primeiro momento ficou sem graça com a minha insistente perseguição, olhava pra ela o tempo todo, ela não sabia o que fazer, às vezes até virava os olhos pro outro lado. Na igreja ficava tentando adivinhar onde ia sentar, pra ficar por perto. Não dava uma folga! A nossa história foi planejada por Deus, sempre conheci tantas meninas e elas não largavam do meu pé, mas com a Paula foi diferente, foi amor a primeira vista.
PAULA
...O Fernando não quer demonstrar que está nervoso também, fica falando para eu relaxar, como se isto fosse possível, está estrada cheia de curvas está me deixando enjoada, não consigo relaxar, queria dormir um pouco para ver se chega mais rápido. Acho que é ansiedade pro que há de vir. Fiquei olhando as curvas e fui relaxando e comecei a sonhar acordada, um sonho lindo, daqueles que a gente não sabe se está dormindo ou não.
-Quando meu pai chegou em casa com a notícia de que seria transferido para uma agência do banco em São Paulo, foi um desastre, o mundo desabou sobre as nossas cabeças, foi uma choradeira só,
ninguém queria ir, deixar a família, os amigos da escola, a igreja, a gente conhecia todo mundo, aquela era a nossa cidade, e de repente ter que largar tudo e ir para um lugar estranho, não foi fácil.Tínhamos um mês para procurar uma casa, mudar de escola, tudo, era muito pouco tempo.O clima na chegada a cidade dentro do carro não era dos melhores, para começar não deu tempo de arrumar a casa, não encontramos nenhuma que agradasse a todos.
Ficamos num apart-hotel até encontrarmos uma casa que atendesse as nossas necessidades, tinha que ser alguma coisa próxima do trabalho do meu pai, da escola (eu odiei aquela escola), nesta cidade é tudo tão grande,
até as distâncias parecem que se multiplicam, é tudo longe, não tem nada perto.
Tem pessoas que viajam às vezes 5 horas por dia para ir e voltar do trabalho, é um absurdo, é muito estranho uma pessoa morar num lugar e trabalhar em outro muito distante, aí, sai do trabalho e vai estudar em outro local mais longe ainda, ninguém trabalha, mora e estuda perto, aqui, acho que estes paulistanos são todos doidos.
Um trânsito infernal, daqueles de deixar os mais paciente dos caipiras estressados, nos recebeu naquele dia. O sol escaldante que nos acompanhou desde São José do Rio Preto, são 450 quilômetros de estrada, transformou-se num temporal daqueles, a marginal Tietê estava alagada. O trânsito começou a ficar ruim na Rodovia
dos Bandeirantes, faltava uns 80 km para chegarmos, aquele aguaceiro só foi parar uma hora depois, o sol abriu novamente para nos dar as boas vindas, só não resolveu o problema do alagamento, a gente nem lembrava mais que tinha chovido e continuava aquele trânsito lento, eu o achei parecido com uma minhoca, daquelas que vão se arrastando lentamente.
Dá para acreditar que demoramos para completar aqueles 80 km o mesmo tempo que gastamos para vir de São José até aqui.Ninguém merece!
Quando chegamos no apart o humor de todo mundo não era dos melhores, só descarregamos as malas, nos registramos e fomos para o quarto, estava todo mundo bem cansado, não prestei muita atenção, mas o local era bem agradável.
As acomodações eram muito boas, quarto bem arejado, as camas espaçosas. O meu quarto tinha uma varanda bem grande, com vistas para a piscina e o jardim, as cortinas grossas de uma cor parecida com ouro, era a garantia de poder dormir mesmo durante o dia, só espero que os hóspedes não usem muito a piscina, fica bem embaixo da minha sacada. Quando não tiver nada para fazer vou poder olhar o movimento.Minha mãe estava que meio sem reação, apática, acho que só agora caiu a ficha de que vamos começar tudo de novo, em uma cidade de proporções gigantescas.Acho que ela não quer demonstrar, mas está apavorada diante desta perspectiva!
Ficamos uma semana no hotel, não precisavá-mos fazer nada, era como estar de férias, só voltinhas para conhecer a cidade, banhos de
piscina, shoppings, aqui tem um monte, dá para ir todo dia em um diferente.Tudo de bom!
Como tudo que é bom dura pouco, no fim da semana meu pai chegou do banco, com uma proposta de um corretor: havia uma casa que poderia nos interessar, acho que o bairro é Praça da Árvore, segundo ele é um bairro bem legal, com metrô perto, shopping, comércio muito bom e uma cara de cidade do interior, não tem muitas casas, porque estão derrubando as que vão ficando velhas para construirem prédios, tem muitos prédios, mas tem também algumas casas.Quando o corretor parou em frente a casa foi muito engraçado, todo mundo adorou. Era uma casa muito charmosa, destas de vila, muito comum na região da Vila Mariana.
Não era grande, as casas aqui são menores, há um pequeno problema de espaço, só os muito ricos moram em casas grandes, ou mais afastado do centro, mas também para quê casa grande, era só nós três, quando viesse alguma visita, ficaria no meu quarto, depois de tanta choradeira acho que estamos dizendo amém para nossa mudança.
Tudo resolvido, agora é só esperar a mudança que chegaria dali há alguns dias.Bom a escola já tinha, casa também, só faltava uma igreja por perto.
Fomos visitar várias, nós somos evangélicos e queríamos uma que fosse parecida com a nossa, cheio de gente alegre, moderna, um grupo de jovens bem organizado, e eu fui falando com Deus e detalhando como queria a igreja para congregarmos e naquela mesma semana fomos conhecer uma.
Chegamos atrasados, não conseguimos ainda calcular tempo e distância nesta cidade cheia de surpresas e quando entramos na igreja o culto já havia começado, fomos recebidos por uma obreira na porta, que nos recebeu com um sorriso, já nos levou para sentar, nos sentimos em casa e antes que pudessêmos nos acomodar o pastor parou de falar e nos apresentou á igreja, contou que estavámos mudando de São José para cá e que íamos congregar lá. Como ele sabia de tudo isso!Eu fiquei roxa de vergonha!A igreja inteira olhando para nós, com certeza meu pai já tinha ido lá e nem falou nada. A única coisa que percebi foi uma família que estava a nossa frente, um casal e um moço, que não conseguia desviar o olhar, ficou o culto inteiro virando a cabeça para trás, eu já estava sem graça com aquela atitude.
Depois da oferta, o pastor pediu aos jovens adolescentes que se dirigissem a outra sala que teria uma ministração especial para eles, até que achei bem legal, as vezes a gente não tem paciência de ficar quietos ouvindo a palavra, a ministração foi feita por um jovem pastor em uma linguagem mais fácil de entender. Eu nem saí da igreja para ir a outra sala, adivinha quem estava esperando para me acompanhar, o próprio, aquele que não parava de me olhar no culto!
Dá para imaginar quem era, é era o Fernando, e desde aquele dia, nunca mais nos desgrudamos, já se passaram 06 anos, parece que foi ontem. Quem poderia imaginar que aquele moço insistente ia conseguir me dobrar. Poucas semanas depois daquele encontro começamos a namorar, e até hoje a gente brinca que o nosso encontro foi marcado por Deus,
que só o Senhor poderia juntar as nossas vidas de maneira tão especial. Fico até emocionada quando lembro dos nossos primeiros olhares, mais do Fernando, ele fala que é mentira que eu também ficava olhando.É, ele tem razão, mas não confesso de jeito nenhum. É o meu segredo! Deixa o Fernando pensar que só ele se apaixonou no primeiro dia.
Mauro (pai da Paula)
-A Rute está tão agitada aguardando o telefonema da Paula, que não consegue relaxar para dormir, ela está há horas revirando na cama, não quero deixá-la nervosa, mas, também não estou me sentindo bem, é uma coisa estranha que não sei bem o que é. Não consigo fechar os olhos e estou tão cansado!
Acho que é a sensação de ver a minha princesa crescendo, esta é a primeira vez que ela viaja sozinha, sem a nossa companhia, até que demorou, qual menina hoje em dia com dezoito anos nunca viajou sozinha? Não quero demonstrar para a Rute, mas estou morrendo de ciúmes de ver a minha garotinha indo por aí , mas vou ficar firme, deixa ela pensar que sou um pai
controlado, que confia na filha e pronto, ela vai voltar contando um monte de novidades.
-É impressionante o quanto a Paula consegue se lembrar, das coisas que ela vê e tem que contar e você fica horas ouvindo tudo com uma riqueza de detalhes de deixar todo mundo cansado..
-Ai que saudades do meu terremoto! Onde ela chega não fica nada no lugar, nem a gente ela deixa ficar sossegado, é a agitação em pessoa. Penso sempre no quanto esta filha nos faz feliz, sempre alegre, sempre carinhosa, um amor!
-Deus guarda a minha filhinha, cuida dela, coloca os teus anjos em volta, livra de acidentes, livra de todo o mal, não sei o que seria das nossas vidas sem ela. As nossas vidas seria tão sem sentido, somos dependentes da sua presença.
Fico me policiando que porque qualquer dia destes ela vai formar a sua família e nos deixar, já estou me preparando.
Quando ela e o Fernando começam a fazer planos para daqui há alguns anos se casarem, não gosto nem de ficar ouvindo, não acho a menor graça neste assunto, mas não vai ter jeito, vou ter que me conformar que os dois vão se casar, e encher as nossas casas de crianças de novo, vai ser uma festa, ver está casa borbulhando de novo, brinquedos espalhados pela sala, tirar a bicicleta do meio da garagem para poder guardar o carro, quando a Paula era bem pequena eu e a Rute parávamos o carro na garagem, tinha que esperar ela descer primeiro, e se alguém saísse do carro antes, ela começava a chorar, se posicionava na frente
do carro sinalizando como se fosse um guarda, orientando para que eu guardasse o carro, não podia de jeito nenhum entrar antes que ela desse o ok, com as mãozinhas, nem conseguia enxergá-la direito na frente do carro, de tão pequenininha, a Rute ficava apreensiva esperando com medo de que eu acelerasse um pouco mais e a derruba-se.Que lembrança boa!Depois de alguns anos é que a gente percebe que o realmente é importante na nossa vida e marca o nosso coração, são estas pequenas lembranças que vamos guardar para sempre. Da infância da nossa filha, da convivência do dia a dia em família. Só quem curtiu os filhos de perto sabem o que é isto. O tempo passa depressa.
FERNANDO
-Não estou conseguindo ver nada nesta neblina!Ainda bem que a Paula está cochilando!Se não, ela não ia deixar eu continuar dirigindo, ela morre de medo de andar a noite e com essa neblina então!Quando a vejo assim dormindo tão tranquila, como se não houvesse nada a nossa volta, só nós dois, imagino que sempre vai ser assim, eu ao lado desta menina linda, que vai ser uma mulher e depois uma senhora, mas sempre do meu lado, assim tranquila como se sentisse protegida, e assumi um compromisso com Deus, que aconteça o que acontecer, esta vai ser a mulher da minha vida, com quem vou passar todos os anos até a eternidade.Ela é tão
linda, os seus cabelos pretos lisos, a maquiagem impecável, ela adora uma maquiagem, quer ver a Paula feliz, dá um produto qualquer de maquiagem novo, não tem erro é o presente ideal, parece uma criança experimentando um brinquedo, ela é um mistério em alguns momentos tão madura me dando bronca por qualquer coisa, em outras, quando está assim dormindo parece uma garotinha, tão inocente!Acho que é por isso que a amo tanto, essa mistura de menina e mulher me fascinam, bem para falar a verdade tudo nela é especial, os olhos de um castanho esverdeado, e dependendo da claridade fica mais claro ou mais escuro, tem vezes que parece que são verdes, outras mel, ela não tem os olhos como os da Mara que são verdes bem claros, e o do
Mauro são castanhos, mas mesmo assim ficou uma mistura perfeita.
Os olhos dela são fascinantes, me perco às vezes olhando pra eles, acho lindo os cílios longos e espessos, as pessoas sempre perguntam se são naturais, a sombrancelha bem feita, parece que foi desenhada, o nariz arrebitadinho, a boca, tudo na Paula é lindo, amo cada pedacinho.Será que daqui há alguns anos, quando a gente tiver os nossos filhos, ela vai ficar mais cheinha, ou não, vai mudar a cor do cabelo, é eu fico às vezes imaginando como vai ser quando a gente estiver bem mais velhos, com os nossos filhos dormindo também no banco de trás, e ela assim cochilando enquanto dirijo, acho que vou ser o homem mais feliz do mundo, Deus foi tão generoso comigo, a minha primeira
namorada é a mulher com quem quero passar toda minha vida, nunca tive vontade de conhecer outras meninas, os meus amigos acham muito estranho, falam que eu sou um idiota, mas só quando eles encontrarem a mulher da vida deles é que vão entender, e somente alguns privilegiados como eu tem a felicidade de durante toda a sua vida ter apenas uma mulher para amar, um amor que preenche todas as minhas necessidades físicas e emocionais, é difícil entender, e não importa se esta mulher é feia ou bonita, se está arrumada ou desarrumada o sentimento é o mesmo, no dia em que a conheci, no primeiro instante que os meus olhos cruzaram os dela, senti uma emoção muito especial, algo que nunca havia sentido por nenhuma menina.
Acho que quando nos encontramos pela primeira vez os anjos falaram amém: é esta a sua companheira para vida.
Teve uma vez na escola bíblica que o professor nos disse que estava tão acostumado de nos ver juntos que é como se fossêmos uma só pessoa. Ás vezes nos esquecemos de perguntar o que o outro quer, concordamos em tudo. Em algumas situações, faço as vontades dela, em outras ela faz a minha, a única preocupação que temos é em fazer um ao outro feliz, penso que se todas as pessoas que se casam tivessem como propósito de vida fazer o companheiro feliz, não haveriam tantos divórcios, o segredo é viver a vida conjugal como está escrito lá no livro de I Corintios 13:4: O amor é sofredor, é benigno,o amor não é invejoso, o amor não trata com
leviandade, não se ensoberbece, não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal, não folga com a injustiça, mas folga com a verdade, tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. Vou viver a vida inteira sem me cansar de fazê –la feliz!
-E essa chuva que não pára!Não consigo ver quase nada a frente!Logo a frente tem um trecho bem sinuoso, mal dá para passar um carro, imagine dois, nesta rodovia quando vem um caminhão, você é obrigado a jogar o carro quase para o mato para que eles possam passar, em alguns trechos não tem nem um pedacinho de acostamento.
Não entendo como nossas autoridades, que conhecem bem esta estrada, afinal de contas ela dá acesso as mais belas praias do estado de São Paulo, não tomem providências no sentido
de melhorar a segurança daqueles que transitam por aqui.
Sonho poder vir para cá com mais segurança no futuro, você não tem tranquilidade, enquanto não chega, é uma tensão só, os músculos chegam a doer.
No inverno para completar, ainda tem neblina e chuva, no verão devido as chuvas fortes a preocupação é com os deslizamentos de terra, que acontecem com frequência. Com tantos perigos somente a beleza deslumbrante do lugar, não fazem a gente desistir. Mas quando a gente chega, a natureza exuberante nos faz esquecer o perigo, as pessoas, nunca vi tanta gente bonita num lugar só.
Da varanda das casas a beira mar é possível ficar olhando os barcos que ficam ancorados, aquela água branquinha, as pessoas praticando esportes,
andando de caiaque, as crianças correndo com medo das ondas, não tem muita areia e a parte que dá para brincar é muito estreita, é preciso tomar muito cuidado, num minuto você está no rasinho, no outro já é muito profundo. A cidade é parada obrigatória para vários navios e quando eles ancoram é um colorido só, a maioria de estrangeiros, que se encantam com as belezas naturais, com o nosso artesanato, no centrinho é possível encontrar muitas lojas com os mais variados produtos.É de encher os olhos.
Quando começam a descer do barco parecem alucinados, querendo comprar coisas, os ambulantes fazem a festa, vendem desde bijuterias, lembranças, tudo que a sua imaginação pensar tem ali, ao alcance daqueles turistas.
Você começa a caminhar entre eles, é como se estivesse em outro país, poucos falam português.
Todas as vezes que a gente vem para praia, é parada obrigatória, dar uma voltinha nas lojas para comprar algumas coisinhas. O artesanato daqui é muito variado, com peças, principalmente móveis, de muito bom gosto, a gente sempre encontra algo que chame a nossa atenção, minha mãe adora passear aqui, tem vezes que até cansa, e eu tenho que vir junto. Na última vez que viemos aqui, teve um show com uma banda que tocava músicas cubanas, um casal de bailarinos que eram um show à parte, no fim as pessoas acabaram não resistindo e todo mundo acabou dançando um pouco, desde mais velhos até as crianças se
renderam aquela dança envolvente.
Ficamos até tarde na praça vendo as pessoas dançarem. Na rua principal é a vez dos restaurantes fazerem bonito, você pode encontrar todo tipo de cozinha, desde as mais simples até as mais sofisticadas, tem muitas opções. Depois é a hora do sorvetinho, não dá para ir até o centrinho e não tomar um. Acho que vou precisar de mais dias para mostrar tudo, vou trazer a Paula aqui mais vezes, os nossos fins de semana serão inesquecíveis.
Estou até vendo a Paula desesperada nestas lojinhas querendo comprar presentinhos, para mãe, para o pai, para o cachorro, ela tem um pastor, ele se chama Bóris, não gosto muito de cachorros, espero que quando a gente se casar a Paula não invente de levá-lo junto!
Eles fazem uma sujeira, são divertidos, mas não quero cachorros na nossa casa, não. Não consigo ver nada.Parece um caminhão ou um carro na contra-mão?Deus o que é isto?Que luz é essa?
Paulaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!!!!!!!!!
O que aconteceu?Onde estou?Paula onde você está?Fala alguma coisa!Não estou sentindo as minhas pernas, nem os meus braços, será que morri?Que barulho é este?Não vi o que aconteceu, só aquele caminhão enorme vindo na minha direção e depois mais nada, só silêncio!É um silêncio tão intenso que parece que tudo acabou, no meio do mato até os bichos parecem que se calam, para entender o que está acontecendo. Deus o que houve? Paula, meu amor onde você
está?Responde, não me deixa sozinho, não vou aguentar ficar longe!Paula, estou tentando mexer o braço para te alcançar, mas eles ficaram tão pesados, não estou conseguindo te alcançar, você esta aí?Paula, fala comigo!Deus não permita que nenhum mal tenha acontecido a minha princesa, será que ela estava sem o cinto, depois que ela dormiu não reparei se ela havia tirado o cinto!Será que ela caiu do carro?Deus me ajuda!
Estou sentindo um vazio imenso, é como se meu corpo estivesse flutuando, não sinto nada, ao mesmo tempo que me vejo preso, machucado, não sinto dores, não vi o que aconteceu, será que estou no morto?
Tantas vezes na igreja ouvi que a nossa vida era como um vapor que a qualquer momento poderia se dissipar, e não dei muita importância, anos e anos ouvindo a mesma coisa, faz a gente só escutar, como se fosse um barulho que incomoda os nossos ouvidos, mas nem sabemos de onde vem, o dia do senhor parecia tão longe, tenho tantas coisas que ainda preciso fazer!Não quero morrer agora!Tenho tantos planos, tanta coisa pra viver, não pode ter chegado a minha hora. Será que a minha vida vai ser só isso, interrompida desta maneira, sou tão jovem ainda, me recuso a morrer desta maneira, quero ficar e viver todos os meus sonhos!Deus me responde, onde você está agora?Eu preciso de ajuda!Não quero morrer aqui
sozinho!Deus o que foi que eu fiz!É tudo culpa minha, não devia ter mentido, nem trazido a Paula escondido, é tudo culpa minha. Como vou pedir perdão pra ela? Nunca tive vontade de escrever, nunca escrevi uma carta, só e-mails, mensagens, mas agora tudo que queria era ter um pouquinho mais de tempo para colocar num papel, o que poderia ter dito a vida inteira e não disse.
• -Mãe, me perdoa, sempre tive todo o tempo e nunca me preocupei com isto, queria te dizer o quanto foi importante ter o seu amor e o seu cuidado, o quanto te amo, acho que estou morrendo, não vai dar tempo de falar tudo que preciso.Ouço vozes bem longe, acho que são pessoas que estão vindo nos socorrer. Será que alguém poderia me ouvir?
-Meu tempo está acabando, estou sem forças, mas preciso falar o que sinto antes de partir.
• -Calma!Não precisa falar!O socorro já está chegando tudo vai acabar bem!
• -Eu sei que tudo vai acabar bem!Quem é você?Como é seu nome?Por favor me escuta, eu só quero deixar um recado, isto está me soando tão idiota, numa hora destas é a única necessidade que eu tenho, deixar em um papel, algumas palavras para as pessoas que eu amo!
-Moço não fala, fica calmo, os bombeiros já vão tirar você daqui!Não tenho papel aqui, você não está em condições de falar, espera mais um pouco!
-Você não está entendendo, meu tempo está acabando, só me escuta e entrega para minha mãe quando puder, você tem um
celular? Me empresta, grava o que vou falar!
Calma, espera um pouco, toma o celular, fala então!
-Você estava sozinho no carro?Não estou vendo mais ninguém.Como você se chama?
-Fernando, eu estava com a minha namorada Paula, procura por ela, ela deve estar por ai. Chama por ela.
-O que foi que eu fiz?
-Paulaaaaaaa! Por favor, não me deixa, onde você está?Está me ouvindo?Moço, por favor, procura por ela, acho que caiu do carro, preciso deixar um recado para minha mãe, e para a Paula, enquanto eu falo, procura por ela!Não se preocupe comigo, estou bem!
-Tá, bom!Fica calmo você não vai morrer!O socorro já vai chegar!
-Moço, como é mesmo o seu nome?
-Felipe, vou procurar a sua namorada, qualquer coisa grita, e pode ficar tranqüilo que entrego o celular para sua mãe, mas fica calmo, o socorro já vai chegar, vim escorregando pelas encostas, os bombeiros já estão bem perto. Já volto!
.........-Mãe, não era assim que queria falar destas coisas, mas não tenho outra opção, me perdoa, na verdade é mentira que eu e a Paula não queríamos ir com vocês para o sitio , é que fizemos outros planos para ficarmos sozinhos, amo você e o papai.Adoro viajar com vocês, acho que não vamos mais estar juntos, mas não deixa de vir para nossa casa, esta estrada vai te trazer lembranças tristes, cada vez que passar por aqui, os seus olhos vão ficar marejados, o coração apertado, uma angústia, eu sei, mas não deixa que isto apague os momentos maravilhosos que
passamos aqui, tinha tantos planos, vim o caminho inteiro sonhando acordado, que eu e a Paula viríamos muitas vezes aqui com os nossos filhos, com vocês brincando com eles na praia, o papai ia ser aquele avô babão, o dia inteiro correndo atrás dos netos, é eu queria um monte, só agora é que me dei conta de que dei uma vacilada, tirei de vocês também o sonho de serem avós, uma escapadinha e todos os nossos sonhos foram enterrados, mãe, mesmo sem filho, sem netos, encontra em Deus forças para sobreviver, você é uma mulher forte, vai conseguir!Ajuda o papai, ele tem essa cara de durão, mas na verdade ele é uma manteiga derretida, juntos vocês vão conseguir sobreviver!Não deixa ele se fechar para o mundo com a sua dor.
-Você foi uma mãe maravilhosa, até na hora das broncas, foi
incrível. Sabe quando brigava comigo porque eu não queria lavar a louça?Eu fazia tudo mal feito para você desistir de pedir a minha ajuda e na escola então , quando fazia algo de errado e a coordenadora chamava para que comparecessem a escola, você me olhava com aquele olhar de decepção, com cara de quem não agüentava mais e me falava assim: Filho não acredito que aprontou de novo?Não sabe o quanto aquele olhar me doía, batia um arrependimento tão grande, vocês não mereciam ser chamados a atenção por causa das minhas artes, não era coisas tão graves, mas aquela coordenadora tinha uma implicância comigo!
Mãe, muito obrigado por ter sido o meu porto seguro, agora vejo com mais clareza que as nossas lembranças mais importantes da vida, com tanta coisa que já fiz, são da nossa vida familiar, sou
privilegiado por ter nascido num lar onde recebi tanto amor, só consigo me lembrar do quanto me amou, das nossas refeições, como era bom o cheiro da sua comidinha.
Do quanto você trabalhava para fazer as minhas festinhas de aniversário, eu nem ligava, mas você tinha tanto prazer. Sabe, estou lembrando agora dos nossos castelos de areia na praia, da gente correndo atrás dos pássaros, eu vinha bem quietinho e quando chegava perto abria os braços e eles fugiam assustados, era uma festa!Mãe fala para o papai que o amo muito, ele sempre foi o meu amigão, meu cúmplice, nunca conseguiu ficar bravo por causa das minhas artes, achava tudo normal, quando a gente empinava pipa.
Até hoje tem uma lata de cerol no telhado, compramos escondido, para você não brigar com a gente,
fala pra ele jogar fora, é muito perigoso!O meu skate e a minha bicicleta, não deixa ele guardar, dá para alguém que vai usar.Nós parecíamos dois moleques, as nossas brincadeiras sempre acabava com a gente discutindo, pai obrigado por ter sido o meu companheiro de aventuras, agora não vou mais pegar a sua caixa nova de ferramentas e deixar jogada na garagem, me perdoa também porque perdia sempre as chaves de casa, quando comecei a aprender dirigir, peguei o carro e dei umas voltas aí na rua de casa, antes de tirar a carteira de motorista e ele nunca contou que me pegou no flagra. Estou tão cansado, os meus olhos não conseguem ficar abertos, está tudo tão escuro, mas não posso dormir agora, preciso acabar, é engraçado mas nunca escrevi uma carta, parece que na carta tem mais emoção, sentimento, mas
aqui agora é impossível escrever, o máximo que dá para fazer é falar, falar, não estou me sentindo bem. Não sei se vão conseguir entender o que estou dizendo, mas guarda só o mais importante, amo vocês!
-Pai, mãe, vocês me perdoam por mais esta?Prometo que vai ser a última, das outras vezes que desobedeci, acabou tudo bem, mas dessa vez sinto que vai ser diferente, tanta tristeza, que vocês nem vão falar assim: Fernando, desta vez ultrapassou todos os limites!Não fiz nada para provocar este acidente, não estava correndo, não fiz nenhuma ultrapassagem, estava com o cinto, apenas uma fatalidade daquelas que a gente não encontra explicação!
-Não fiquem bravos comigo, quero que vocês cuidem mais ainda um do outro, não fica sofrendo por minha causa, estou indo em paz, quem sabe Deus não permite que
possamos lá no céu nos ver novamente.
-Mãe, será que Deus vai me perdoar por ter mentido, estou tão arrependido!Tantas vezes me falou que não devia mentir nunca por pior que pudesse parecer, que o pai da mentira é o diabo, bláblábla´....Mas hoje resolvi não te obedecer, uma mentirinha de nada e olha só o que aconteceu!Não sei onde está a Paula, estou desesperado de saber que por uma bobagem compliquei as nossas vidas, joguei fora todos os meus sonhos e os dela também, você não precisa se sentir culpada, se é que existe algum, pensa que usei o meu livre arbítrio para causar esta grande tragédia na nossa família, o nosso castelo desmoronou!Outro dia me pediu para dar uma volta com a cachorra e não fui porque estava cansado, agora neste exato momento tudo que queria fazer na vida era poder
te ouvir só mais uma vez dizendo assim:
Filho, põe o lixo lá fora!Vai até o mercadinho buscar pão!Recolhe o lixo do banheiro!Agora vai ter que pedir para o papai, porque não vou mais poder fazer isto!
-Estou com tanto frio, e não está aqui para me cobrir, quando saí, não estava em casa e não lembrei de pegar um agasalho.
Estou ouvindo barulho de pessoas falando, as vozes estão tão longe, acho que os bombeiros estão tentando chegar aqui!
Tem alguém segurando a minha mão e me pedindo para ficar calmo! Quem será este homem que me emprestou o celular? Parece que o nome dele é Felipe, alguém que nunca vi, e nos meus últimos momentos o senhor o colocou aqui no meio desta ribanceira para me ajudar, será que este homem é um anjo?Mãe, agradece a ele por isto,
foi muito importante ter alguém do meu lado nesta hora, não estou conseguindo mais falar, se não, ia dizer que estou muito tranqüilo, o meu coração só está triste, porque não vou mais deitar no seu colo e reclamar porque está desmanchando o meu cabelo, ouvir você brigando porque o meu quarto está uma bagunça, que deixei o tênis fora do lugar.Agora tudo está tão nítido na minha mente, sabe aqueles pequenos momentos em família, é só disso que consigo me lembrar.Olha, não deixa de fazer aquele bolinho de cenoura com cobertura de chocolate, que só você sabe fazer, o papai gosta muito, continuem vivendo, mesmo sem a minha presença, os nossos planos foram interrompidos, mas continua, vai caminhando, ninguém nunca vai estar preparado para morrer ou perder um filho tão jovem, mas a
vida está no controle do nosso Deus.
Só ele sabe a hora de partirmos, e aprouve que agora chegasse a minha, tenham muita fé, continuem crendo que apesar de tudo Deus é maravilhoso e vai dar forças para que continuem a caminhada, me perdoem por tudo! A vida tem que continuar ainda que pareça que o mundo acabou, na palavra tem um versículo que diz assim, ainda que a figueira não floresça, e não haja fruto no campo, eu me alegrarei no senhor, é nestas horas que o verdadeiro amor pelo senhor tem que ser demonstrado.
Sorrir quando o coração está sangrando, aceitar a vontade do pai, sem se rebelar.
Sei que vai ser muito difícil meus amores mas é só o que posso pedir, aliás, não tenho o direito de pedir nada, estou me sentindo tão culpado por este momento de
tristeza na vida de vocês, pode ser que isto fosse acontecer de qualquer forma, mas vir para praia com a Paula, escondidos, sem avisar os pais dela e nem vocês, foi imperdoável!O preço alto demais, as conseqüências definitivas demais, sei que desta vez pisei feio na bola!Não vai dar para recomeçar e corrigir, nós precisamos estar preparados para estas interferências nas nossas vidas, mas é tão difícil!O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pelo amanhecer, a alegria na nossa família vai demorar um pouco para chegar de novo, mas creio que ela virá, num momento como este você vai ficar arrependida por não ter tido outros filhos para compartilhar esta dor, mas não fica se cobrando, que deveria ter feito assim ou assado, foi Deus que não permitiu que tivessem mais filhos, se apóia no grande amor que vocês
tem, é isto que vai sustentar a caminhada daqui para frente.
Se tiver vontade você é muito jovem, adota uma criança, reparte com ela um pouco deste teu grande amor. Mãe, pai, adeus, é um adeus com um gosto amargo de sangue, mas tão definitivo, que não encontro palavras para descrever, é mentira que nós homens somos insensíveis, que o nosso coração não se abala por qualquer coisa, que somos fortes, agora estou vendo o quanto sou carente da força de vocês, dos seus incentivos, do seu:
Vai, filho! Você vai conseguir, estou me sentindo tão fraco, tão impotente diante de tudo isto, não consigo nem estender a minha mão.Vocês iam saber o que fazer, pai e mãe tem resposta pra tudo.Será que algum dia vão conseguir aceitar tudo isto?
Adeus, de novo, pai e mãe, só promete uma última coisinha, não esquece de mim, não, tá!
A vida é como um vapor que demora um pouquinho para ser feito, mas em alguns segundos se dissipa e acaba, a palavra é verdadeira, a minha vida está sendo assim, está se exalando como se fosse um vidro de perfume esquecido aberto...
-Estou com tanto frio, este lugar está gelado!Estou sentindo um gosto amargo de sangue na boca, não estou mais agüentando falar.Fiquem com Deus!Até algum dia......
-Parece que estes minutos estão demorando horas para passar, não consigo parar de falar acho que é de nervoso, todas vezes que enfrento alguma dificuldade é assim, falo sem parar, nem sei mais o que estou dizendo, é como se estivesse sobre efeito de um sedativo.
Uma vez fiz um exame de endoscopia e foi aplicado um sedativo, não vi nada, quando dei por mim, o exame já tinha acabado e já estava em casa, o estranho é que vim até o carro andando e conversando, e não me lembro de nada, estou me sentindo assim agora!
Mãe, se você me ouvir chorando, não é por que estou com medo da morte, quanto a isto estou em paz, mas é só porque queria poder mais uma vez te dar um abraço tão apertado que ia durar toda eternidade.
Todas as vezes que você encontrar alguém que você ama, dá um abraço assim bem apertado, e guarda a sensação de aconchego, de proteção, a gente não sabe quando vai ser o último.
Queria poder guardar num vidro o sabor que tem um beijo de pai e mãe, quando a gente cai e se machuca, vocês vem pega a gente
no colo, dá um beijinho, passa um remedinho e pronto tudo sara, é bom ser criança, quando a gente cresce as dores são mais intensas, não saram com beijinhos e carinhos, mas estou sentindo o quanto seria bom ter você aqui ao meu lado cuidando de mim.O dia já está amanhecendo, consigo ver os bombeiros mexendo no carro tentando achar um jeito para me tirar daqui, será que eles encontraram a Paula?Será que ela se machucou muito?No escuro não dá para ver com clareza o estrago, mas agora com o sol aparecendo vai ser mais fácil procurar por ela, Deus ajuda a Paula, não deixa ela morrer aqui comigo!Ela é tão jovem tem uma vida inteira pela frente, os bombeiros estão chegando perto.
Consigo ver uma parte do uniforme deles, eles trazem muitos equipamentos nas costas deve ser para cortar a lataria do carro, não
dá para ouvir o que dizem!Quero saber notícias da Paula, cheguem mais perto, por favor!Onde será que está aquele homem, o Felipe, que deixou o celular aqui comigo, onde será que ele foi?Já faz um tempão que saiu para procurar a Paula e não voltou, será que a encontrou?Quero me mexer, fazer algum gesto, mexer as minhas mãos, os meus pés e não consigo, dá uma sensação de impotência, ficar assim parado dependendo de alguém que se disponha a falar comigo.
A minha roupa está molhada, e já consigo ver que é de sangue, vermelho, como se fosse um vinho tinto, este sangue todo me fez lembrar o sacrifício de Jesus na cruz do calvário, será que ele nos últimos momentos sentia dores, ou estava assim, anestesiado, como se estivesse sem a atuação da força da gravidade, as minhas pálpebras estão fechando, não
consigo mais nem manter os olhos abertos, quero ficar acordado, mas é muito difícil, controlar esta fraqueza que está tomando conta do meu corpo. Posso sentir os raios do sol batendo no meu rosto, bem tímidos, mas a luz que emana destes raios é tão clara, tão quente, parece o seu abraço, mãe, é tão quentinho, envolvente, parece um carinho, quando o calor aumentar daqui a pouco, já não sentirei mais a força dos seus raios sobre a minha pele, estava com tanto frio, agora já estou sentindo calor, um calor muito intenso. Parece que chegou o fim. Pai se possível afasta de mim este cálice, mas que seja feita a tua vontade!
FERNANDO-PAULA
-Paula, quero falar com você, estou triste porque a nossa estória vai terminar assim, sem o foram felizes para sempre, estou aqui preso sem conseguir me mexer, sem poder fazer nada para te ajudar, nem sei direito o que aconteceu, se algum dia puder me perdoar por tê-la colocado nesta enrascada, tantas vezes você me disse que estava apreensiva, com medo mesmo e não te dei ouvidos, era Deus falando ao seu coração, mas agora não adianta lamentar, sei que não vou mais ver o seu rostinho lindo, que todos os nossos sonhos terão que ser interrompidos abruptamente, sem chance nenhuma de recomeçarmos, mas a morte é tão definitiva, ela destrói todos os planos, ficamos sem chão, e agora
o que é que vou fazer?Eu, Paulinha, não vou mais poder sonhar com você, Deus vai preparar uma outra pessoa para realizar estes teus sonhos, os sonhos que sonhamos juntos, sei que agora vai doer muito, que você vai até pensar em desistir de viver, que não dá para prosseguir sozinha, mas é muito forte, nada vai tirar a sua alegria de viver, não deixa de visitar a minha mãe, olha por ela quando eu não estiver mais aqui, ela vai ficar muito feliz com a sua presença em casa, queria que você mesmo quando encontrar uma outra pessoa, não deixa ela fora da sua vida, vai ser muito difícil para eles continuarem sozinhos, deixa eles serem os avós postiços dos seus filhos, porque até isto eu os privei.
Sabe, vim o caminho inteiro pensando em como seria a nossa vida daqui há alguns anos, com você mais velha dormindo enquanto eu dirigia e os nossos filhos no banco de trás, pensei em pelo menos dois, agora sei que foram apenas sonhos distantes que não vão se realizar, amor vive a sua vida como se fosse o último minuto, só queria de novo te pedir perdão, os anos que estive ao seu lado foram os melhores anos da minha vida, é uma pena que de repente tudo vai ter um fim, mas não quero que fique parada, esperando a morte chegar, desistindo da vida, seja forte, comece de novo, encontre alguém que mereça o seu amor, tenha os filhos que não pudemos ter, construa uma vida ao lado desta pessoa, e não esquece da minha família, eles não vão ter mais nada para sonhar.Os meus sonhos terminam aqui, mas os seus
precisam ser sonhados com outra pessoa, fui muito feliz ao seu lado nestes anos, você foi uma namorada incrível, nós nos divertimos tanto!Você é a alegria em forma de gente, ninguém consegue viver infeliz ao seu lado. Paula, pede perdão aos seus pais por mim, quebrei a confiança deles, quando inventamos esta mentira, pede para que não fiquem com raiva, a vida é tão curta para perderem tempo com estes sentimentos.Estou indo embora!Não consigo mais ficar com olhos abertos!Adeus minha princesa!Somente a morte poderia nos separar!.....
E ela chegou no momento errado, tão cedo, mas chegou, de uma forma inesperada, assim como a vida chega de mansinho sem avisar, a morte também.
Num minuto sonhos, projetos, alegrias, no outro dor, lágrimas e tristezas, mas assim é escrito o
livro da nossa vida, o próximo capitulo depende das mãos hábeis do poderoso escritor, que a cada dia acrescenta um capítulo novo a história de cada filho seu, uns capítulos tristes, outros felizes, e só sei de uma coisa minha princesa, vale a pena viver, a vida é um presente de Deus para nós, vamos viver intensamente cada capítulo novo acrescidos ao nosso livro, seja muito feliz, te amo, como nunca pensei amar alguma mulher, guarda para sempre o privilégio de ter sido muito amada, viver a nossa breve história, foi um presente lindo que o senhor nos Deus, continua vivendo os próximos capítulos que serão escritos só para você!Não pensa que acabou a nossa história, ela só não foi escrita do jeito que pensamos. Há um tempo para todas as coisas. Agora é o nosso tempo de chorar.
É um sentimento estranho, não consigo ficar triste por partir, me sinto resignado, como se entendesse a vontade de Deus. O tempo não pertence a nós, viva cada dia como se fosse o último, de verdade não quero ver os seus olhos tristes, a sua alegria deve ser suficiente para ajudar as nossas famílias a prosseguir.
Estou querendo bancar o forte, mas no fundo estou morrendo de medo, o que será que vai acontecer agora!Já estou sentindo ciúmes do homem que vai amar você pela primeira vez, dos filhos que terão. Não quero mais nem pensar nestas coisas.
Estou falando de morrer, mas a vida tem muitas surpresas, quem sabe esta tristeza não se transforma em alegria ao amanhecer, tudo pode acontecer.

PAULA
-Fernando! O que é isto! Cuidado! Jesus, nos ajuda! Socorrooooo! Alguém pode me ouvir, não consigo ver nada. Tirei um pouco o cinto, a alça estava me apertando, acho que batemos o carro, e fui jogada pra fora, onde estou!-Meu Deus, onde está o Fernando, será que ele está bem?
-Estava sentindo que algo de ruim ia acontecer, eu sabia, Deus estava me avisando.Meu Deus, me perdoa por não ter te ouvido, cadê o Fernando, não consigo ver nada nesta escuridão, está muito frio, está tudo molhado!
-Fernando!Por favor me responde, onde você está?Amor não me deixa sozinha, estou com medo!
-Não consigo mexer a minha perna, estou presa!
-Jesus, o que foi que fiz, acho que o senhor quis me punir porque menti para os meus pais, me
perdoa, estou tão arrependida, nada disso poderia estar acontecendo, Fernando, por favor onde você está, me ajuda, estou com muita dor, tudo está tão escuro, morro de medo de bichos, esta mata deve estar cheia deles. Por que, não consigo mexer a perna? Não estou no carro, as minhas pernas estão presas, me lembro da porta abrindo, acho que estou encostada no barranco, estou toda molhada, os meus olhos estão pesando, não estou conseguindo mantê-los abertos.Deus, não posso desmaiar agora!
-Socorro!Estou aqui!Fernando, me ajuda!Onde você está?Meu rosto está machucado! Tá, doendo tudo, acho que vou tentar me levantar!Mas, eles falam pra gente não se mexer e esperar o socorro!
-Quem vai me achar aqui no escuro, será que o Fernando viu onde caí!
Mãe, me perdoa, estou tão arrependida por ter mentido, sei que Deus não castiga ninguém, este acidente é só conseqüência da minha escolha, de vir pra cá escondida.Meu pai vai me matar!Será que alguém viu que nós batemos no caminhão, será que o caminhoneiro viu que nós caímos na ribanceira?
-Meu Deus, será que grito, ou espero até ouvir algum barulho.Acho que vou esperar, mas e se eu desmaiar de frio?Ai, eu quero a minha mãe!
Não sei quanto tempo estou aqui, o tempo parece ter parado, será que são horas, será que desmaiei quando caí, não estou agüentando mais, e esse silêncio é assustador, parece que tudo parou.
-Ai, Jesus!Obrigado meu Deus, obrigado, estou ouvindo as sirenes
do bombeiro, ai, eu sabia que o senhor não ia me abandonar aqui, eles vão me achar, o senhor é tão fiel, mesmo quando te desobedeço, obrigada por cuidar de mim. Socorro! Estou aqui! Alguém está me ouvindo! Estou aqui! Socorro! Não consigo me mexer! Alguém precisa me ouvir! Estou aqui! Nossa, parece que tem até cachorro! Estou ouvindo latidos! Quanto tempo será que já passou, não sei quanto tempo estou aqui, engraçado parece que por cima do mato tem sol, mas tava noite quando caí, será que fiquei desacordada? Se passou bastante tempo, todo mundo deve estar preocupado! Ai, eu não queria causar tanto problema.
Paulaaaa! Você está nos ouvindo! Tenta fazer algum barulho, para que possamos te encontrar! Está nos ouvindo!
-Droga, a minha voz não sai direito!Estou aqui, encostada no
morro!Tem muita árvore, não consigo ver quase nada!
-Socorro!Alguém, me ajuda! Tô aqui!
-Se conseguir pegar aquele galho, vou ficar chacoalhando, até os cachorros acharem, eles estão perto, consigo ouvir os latidos, ai, estou quase conseguindo, se esticar um pouquinho, não to agüentando, minhas pernas estão doendo muito, meu Deus, me ajuda agora, só mais um pouquinho, to quase conseguindo. Ufa! Consegui, só não posso soltar!
O soldado João do corpo de bombeiros, nem acreditou quando de longe viu um galho de um arbusto se mexendo, como se alguém o chacoalhasse com força, uma força desesperada, saiu correndo naquela direção, mas os cachorros foram mais ligeiros, chegaram lá primeiro.
-Vai buscar ajuda!Sai daqui!Vai lá mostra pra eles onde estou!Não
fica ai parado!Vai cachorrinho lindo! Volta lá!
-Ai, meu Deus, como é que se fala pra esses cachorros irem buscar ajuda, só ficam aí me olhando!Nos filmes sempre tem um monte de bombeiros atrás deles!Onde eles estão!Começa latir, chama alguém!
O soldado, quando viu os seus meninos ali cuidando da vítima, esperando a sua chegada, encheu o seu peito de alegria, eles eram fantásticos, porque será que eles não latiram, ficaram ali quietinhos.
-Achamos!Ela está aqui!Está viva!Desce os equipamentos!Ela está muito machucada!
-Que alegria encontrar você com vida, procuramos a noite inteira, está muito longe de onde o carro caiu, estávamos sem esperança de te encontrar com vida!
Teve muita sorte! Aguenta mais um pouco o socorro está chegando!
-Moço, onde está o Fernando?Eu quero ver ele, ele ta machucado!Vocês já socorreram ele! Ele está vivo, porque como saberiam que eu estava no carro?
-Fica calma, vai ficar tudo bem!Nós vamos cuidar de você agora!Faz muito tempo que está aqui, vamos tirá-la daqui logo, pode descansar!Vai dar tudo certo!
Ver aquela menina com vida, depois de quase 10 horas presa naquela mata, trouxe um sentimento de dever cumprido àquele soldado, enquanto houver uma chance de vida, o trabalho não pára, cada vez que uma vida é salva por ele não ter desistido, a sua bateria de persistência é carregada.
O aparato foi cinematográfico para descer aquela encosta e subir a vítima, foi preciso muito planejamento para que nada desse errado. Aquela menina tinha uma força e uma vontade de viver
inexplicável, lutou até o fim e venceu a batalha, ela ia sobreviver.
-A subida foi muito difícil, em alguns momentos a dor era tanta que eu apagava, parece que passava muito tempo, quando abria os olhos de novo, via que tinha sido só alguns minutos.Foram horas de muita aflição até chegar ao carro do resgate.Parecia uma eternidade, o tempo parou.
A única cena que não se apagará nunca da minha mente, foram os olhos de desespero dos meus pais, quando me viram chegando naquela maca, tão machucada, suja de lama, a alegria era imensa, mas havia uma pergunta ainda sem resposta, ela vai sobreviver?
-Mãe, pai, me perdoa!Não queria que isto tivesse acontecido
-Filha, esquece isto, nada mais tem importância, fica tranqüila, vai ficar bem, nós estamos aqui, não
está mais sozinha!Vamos cuidar de você!Tudo vai dar certo!
-Pais, ela está bem, foram só algumas fraturas na pernas, talvez precise de cirurgias, no resto do corpo foram só arranhões e algumas escoriações, ela não corre risco de morrer por estes ferimentos!
-Graças a Deus!Senhor obrigado!Estávamos tão aflitos!
-Um de vocês pode acompanhá-la na ambulância até o hospital.Procura não deixar ela falar muito, nem ficar emocionada.
-Eu vou!Mauro, você vai atrás e leva as coisas dela para o hospital, pode ficar até resolver tudo, procura a Mara e o Paulo, veja se tem notícias do Fernando, toma cuidado para não falar na frente da Paula, não vai deixar ela nervosa, qualquer coisa fala que está tudo bem.O celular está ligado, se precisar de alguma coisa liga.
-Mãe, por favor, não mente pra mim, onde está o Fernando, ele se machucou!Você viu ele?Ele já foi pro hospital? -Filha, calma! O Fernando está bem, ele foi socorrido primeiro, ele que pediu para os bombeiros procurarem você, o acidente aconteceu ontem a noite, só agora
eles ampliaram a área de procura, estava muito longe do carro.Agora fica calma, não fica falando, tá! Dorme um pouquinho, dá a mão pra mamãe segurar, como quando você era criancinha e estava com medo do escuro.
-Tive tanto medo, aquele lugar era horrível, não dava pra ouvir nada, era um silêncio, que parecia um filme de terror!Cheguei a pensar que ia morrer ali, sem ninguém me encontrar.
-Já passou, agora fica calma!Nada vai te assustar!Eu vou proteger você, tá bom.
-Estou com os olhos pesados, se eu dormir, você vai lá ver como o Fernando está?Eu preciso de notícias, fala que estou bem, não deixa ele preocupado comigo.
-Tá filha, assim que chegar no hospital, eu vou, prometo.
-Jesus, o que eu faço, não posso mentir para a Paula e nem falar a verdade, como vou dizer que o Bruno está na UTI, correndo risco de morrer, não sei o que fazer.
Dona Ana?Tudo bem?
-Me desculpe, não estava ouvindo o que o senhor disse?
-Me acompanhe, vou levá-la até a recepção, fazer a internação da sua filha, é a parte burocrática e eu preciso que a senhora nos dê algumas informações, para fazer a documentação.
-Você sabe me dizer alguma coisa sobre o estado de saúde do Fernando, o namorado da minha filha, ele veio primeiro, em outra ambulância.
ANA e MAURO
Coração de mãe não se engana eu sabia que alguma coisa estava errada, a Paula já viajou outras vezes e nunca me senti assim, sabia que alguma coisa ruim havia acontecido. O Mauro acha que sou exagerada mas desta vez tinha razão. Aquela ligação já estava sendo aguardada. Parece que a gente sente quando os nossos filhos estão em perigo. Até agora não consigo esquecer aquela voz.
-Eu sou do corpo de Bombeiros, aconteceu um acidente grave na estrada Mogi Bertioga,encontramos este celular no carro, não temos notícias concretas do estado de saúde dos ocupantes do carro, a principio, pensamos ser só uma pessoa, mas pela bagagem vimos que tem mais uma pessoa, uma das vítimas não foi encontrada ainda. Vocês podem vir pra cá, o endereço é.....A
senhora está me ouvindo!Tem alguém aí que possa conversar comigo.
-Mauro atende o telefone, parece que aconteceu um acidente com a nossa filha, não estou entendendo, eles estavam só no carro, cadê os pais do Fernando?
-Alô, quem está falando?O que está acontecendo, o que houve com a minha filha?
-Senhor, fique calmo, não sabemos ainda o que aconteceu com a sua filha, ela ainda não foi encontrada, o lugar do acidente é de difícil acesso e está muito escuro, já tem um grupo muito grande de bombeiros auxiliando no socorro, é importante que vocês venham pra cá, com calma, não queremos outro acidente. Anota o endereço...
-Tá, nós estamos a caminho, qualquer notícia, me mantenha informado até que cheguemos aí. O nosso telefone está no celular.
-Rute, vamos a nossa filha precisa de nós, fica calma, pega roupas, documentos, carteira do convênio, não sabemos a situação, é melhor estar prevenido, vou me trocar e tirar o carro, não demora!O bombeiro disse que ainda não a encontraram, vamos rápido!
-Mauro, estou com tanto medo!Eu sabia que havia algo errado, o meu coração não se engana. Como será que está a nossa filha?E o Fernando?E a Mara e o Paulo, será que estavam em outro carro, porque eles não ligaram pra nós?Estranho o policial falou que os meninos estavam sozinhos, será que eles foram jogados pra fora do carro?Ai meu Deus, que tragédia!
-Mauro, tenta ligar pra Mara, o telefone celular dela está na agenda azul, enquanto eu pego as coisas.
-Meu Deus ajuda a minha filha, mostra para os bombeiros onde ela está, não deixa que nada de ruim
aconteça a ela. Meu pai envia os teus anjos lá, não permita que nada aconteça de ruim. Cuida dela!
-Rute, vamos, pega as coisas logo, o tempo está passando!
-Já liguei pro celular do Paulo e da Mara, a mensagem é a mesma:
-Este celular encontra-se desligado ou fora da área de serviço. Droga, quando você mais precisa estes celulares não funcionam!
-Vamos Rute, no caminho a gente vai tentando ligar pros pais do Fernando.
MARA E PAULO
-Sim, sou eu, quem é?
-Achamos o seu telefone no carro que sofreu um acidente na estrada para Ilha Bela, eu sou o sargento Lopes, do corpo de bombeiros.
-Moço pelo amor de Deus, me explica direito o que houve!
-A senhora é mãe do Sr. Fernando, ele sofreu um acidente muito grave na estrada para Ilha Bela, no momento ele está sendo resgatado, precisamos que vocês venham pra cá, com urgência.
-Paulo, pega uma caneta e anota o endereço, o Fernando sofreu um acidente na estrada, eu sabia que algo ia acontecer.
-Vamos rápido, vou me trocar, avisa a Márcia e o Ricardo!
-O Bruno sofreu um acidente, precisamos ir pra lá agora!
-Mara, vocês estão muito nervosos, a gente vai com vocês, o Ricardo vai dirigindo.
-Márcia, obrigada, mas não podemos esperar, pode ficar tranquila, o Paulo dirige com tranquilidade, não queremos outro acidente. Assim que chegarmos lá eu ligo, o Fernando já está sendo resgatado, Meu Deus, o acidente foi sério!Fiquem aqui orando por nós, qualquer notícia eu ligo!
-Paulo, sabe onde é o hospital pra onde eles levam em caso de acidente na estrada?Porque até a gente chegar lá ele já foi socorrido.
-Vamos, no caminho a gente liga e pergunta pro policial, você anotou o telefone dele?
-A Paula devia estar com o Fernando, liga pra eles, talvez saibam de alguma coisa.
-Alô, Mara, pelo amor de Deus o que está acontecendo?Estamos tentando falar com vocês há um tempão.
Me ligaram falando de um acidente com o Fernando e a Paula, mas eles não estavam com vocês no carro?
-Oi Rute, estou desesperada, não sei nada sobre o acidente, mas eles não estavam conosco, implorei pra que eles viessem pro sítio da Márcia e do Ricardo, mas a Paula não quis de jeito nenhum, pelo menos foi isso que o Fernando nos disse. Acho que fomos enganadas! Depois a gente conversa sobre isto.
-Estamos na estrada, qualquer notícia que tiver me liga, estamos mais longe, vai demorar mais um pouco para chegarmos lá.
-Tá, eu tô com o celular ligado, não encontraram a Paula ainda, tô desesperada!Mais uns 30 minutos e chegamos lá.
-Alô, Mara, já chegamos aqui eles acabaram de encontrar a Paula, ela teve algumas fraturas mas está bem, nada muito grave, o
Fernando já foi levado pro hospital, há algumas horas, não conseguimos vê-lo, o estado dele é bem mais grave, foi a única informação que conseguimos, pode ir direto pro hospital, segundo o bombeiro só tem este aqui na cidade, mas é bem equipado e tem condições para atendimento de emergências. Vocês estão longe ainda?
-Não Rute, já estamos perto, acho que mais uma hora de viagem, estamos indo direto pro hospital.
A espera nos corredores de um hospital é angustiante, a gente fica ali esperando por notícias, porque ao mesmo tempo que queremos um diagnóstico, não queremos encarar a realidade se ela for muito dura.
Já se passou horas desde que o Bruno foi socorrido e o médico não vem dar noticia, a Mara está chegando e eu não tenho nada pra dizer.
-Moço, por favor, você conseguiu alguma informação sobre o estado de saúde do namorado da minha filha.
-Senhora, ele está na sala de cirurgia, o estado de saúde dele é bem delicado, a única coisa possível neste momento é crer num milagre, assim que os médicos saírem de lá eu trago notícias mais concretas pra senhora.
-Mara!Estamos aqui, acabei de perguntar sobre o Fernando e eles não tem noticias da sala de cirurgia!
-Meu Deus, o que estes meninos aprontaram, tanto que a gente fala, sobre os perigos, mas parece que não ouvem, entra por um ouvido e sai pelo outro. A gente faz de tudo para sermos compreensivos, mas parece que não adianta nada. O Fernando sempre foi tão responsável, porque mentir pra nós desta maneira
irresponsável?Estou tão envergonhada pelo que aconteceu?
-Mara, não fica se torturando, depois a gente esclarece o que houve, não vamos perder tempo com indagações sem resposta, agora é hora de nos unirmos e pedir pra Deus, salvar a vida dos nossos filhos!
-Esta deve ser a nossa grande preocupação neste momento, vai ali vê se consegue alguma informação, você é a mãe dele talvez consiga alguma coisa.
-Moça, a senhora é a mãe daquele rapaz que sofreu o acidente na estrada?
-Não é aquela ali perto da recepção, por quê?
-Queria entregar algo pra ela!
-Mara, este rapaz está a sua procura!
-Oi, eu sou Felipe, estava na estrada na hora do acidente e desci pra prestar socorro, cheguei
antes dos bombeiros, consegui falar com o seu filho, ele queria um papel pra deixar uma carta pra você e pra namorada dele, como eu não tinha, deixei o meu celular com ele, enquanto procurava a moça, ele não conseguia ficar quieto de tanta preocupação com ela, e ele gravou uma mensagem pra vocês. Se a senhora quiser pode ficar com o celular, eu compro outro.
-Moço, muito obrigado por ter cuidado do meu filho enquanto o socorro não chegava, fico feliz de saber que ele não ficou sozinho, eu sei que esta mensagem é muito importante, mas vou ouvir a voz do meu filho pessoalmente. Muito obrigado pela sua atenção, vou guardar o celular, vou lutar até o último instante, se no fim perder a batalha, vou ouvir a mensagem, me deixa o seu endereço pra que possa devolver o aparelho!
-Deus me ajuda, meu coração parece que vai partir!
-Mara você tem que ser forte agora, o Fernando e o Paulo precisam da sua força pra vencer, você não quer se sentar ali, depois você ouve a mensagem.
-Mauro, chama o Paulo, vê se ele quer ouvir o recado do Fernando, com a Mara.
-Senhora Ana?A sua filha já está no quarto, e pede que vá vê-la.
-Mara vou ficar um pouco com a Paula quando terminar se quiser vá até lá, a Paula vai ficar feliz de ver você, ela está ansiosa para saber noticias do Fernando, acha que eu sei de alguma coisa e não quero falar.
-Deixa eu me acalmar um pouco que eu vou, este meu desespero não vai servir de nada pra ela.
-Fernando, filho!Porque as coisas tinham que acontecer desta maneira. Porque você foi pegar a estrada sozinho a noite e mentiu
pra nós?Filho, não vou me perdoar por não ter insistido mais e levado você conosco, olha que tragédia!
-Dona Mara?Sr. Paulo?A cirurgia acabou, ele está na unidade de terapia intensiva, a situação é bem grave, mas as próximas 72 horas serão determinantes para evolução do quadro, não se pode fazer mais nada, só esperar e se a senhora tiver alguma crença, comece a pensar em milagres.
-Vou falar com a enfermeira chefe para liberar a entrada de vocês na UTI por alguns minutos para que o vejam. Depois vocês podem ir pra casa, o horário de visitas é no período da manhã, veja com a enfermeira o horário correto.
-Dr. Muito obrigado por tudo, mas enquanto meu filho não melhorar não sairei daqui, vou sair com ele pra ir pra casa.
-A senhora é quem sabe, isso pode demorar um pouco, se acontecer.
-Mas vai, tenho muita fé, e Deus não vai me abandonar nesta hora.
-Então, pode entrar agora!Bem rapidinho, ele precisa descansar.
A imagem parecia de terror, ver o meu filho tão lindo naquela cama, parecia sem vida, tantos tubos, o rosto desfigurado, nem parecia ele, aquele odor da UTI, é insuportável, tem cheiro de morte.
Mas eu não vou desistir de ver o meu filho sarado, ainda que a situação não se mostre favorável vou crer num milagre.
-Paulo, fala alguma coisa, você fica ai parado sem reação, o Fernando não morreu, ele está vivo e é isto que importa, preciso de você do meu lado, porque se deixar de crer no milagre, não vou encontrar forças pra prosseguir, preciso da sua força.
-Amor, é muito difícil ver o Fernando neste estado, não tenho vontade de falar, se pudesse trocaria de lugar só pra não vê-lo
sofrer, vamos sair, vamos ouvir juntos a mensagem que ele nos deixou, assim a gente se anima um pouco em ouvir a voz dele. Estamos juntos esta batalha!
-Não vou ouvir nada por enquanto, é como se estivesse me despedindo dele, não vou desistir, pensando bem, esta mensagem só vai ser ouvida quando o Fernando sair daqui, de um jeito ou de outro.....
-Mara?Vocês conseguiram noticias do Fernando?
-Já, Rute, até entramos na UTI, o estado dele é muito grave, mas nós vamos vencer.
O médico disse que as primeiras 72 horas são cruciais na recuperação, a partir dai é possível ter um diagnóstico, ele é jovem, vai conseguir. E a Paula?
-Tá tudo bem, teve duas fraturas nas pernas, mas não vai ser preciso operar, só gesso, o resto são escoriações leves, só fizeram a
limpeza. Os médicos disseram que ela teve muita sorte, apesar de estar sem o cinto, quando foi arremessada o mato amorteceu a queda, não se machucou muito, ela dormiu um pouco, depois eu falo do Fernando, ela vai ficar aqui em observação e amanhã vai pra casa. Logo cedo o médico vai dar alta.
-Graças a Deus, nós nem sabemos quando poderemos voltar pra casa. O Paulo vai até em casa pra pegar algumas coisas, depois ele volta.
-Você não quer que o Mauro vá com ele, é bom ter uma companhia!
-Se ele quiser ir, fico mais tranquila, não dormimos a noite, pelos menos eles vão conversando. Depois vocês podem ir pra nossa casa descansar um pouco é bem perto daqui.
-Tá, quando eles chegarem a gente vê o que vai fazer.
-Quer subir um pouco e ver a Paula?
-Vamos, assim me distraio um pouco.
-Paula, tudo bem?Como você está?
-Mara, me perdoa, nem sei o que dizer, devia ter impedido o Fernando, tirado cabeça dele esta idéia maluca de viajar escondido, aí isto não teria acontecido, onde ele está?Preciso falar com ele!
-Calma, uma coisa de cada vez, o Fernando está bem, um pouco mais grave do que você, mas está se recuperando, vocês precisam descansar, vão ter todo o tempo do mundo pra conversarem, agora fica ai quietinha, pra melhorar logo. Não se preocupe, não estou brava!Vou descer pra ficar com o Fernando, ele não gosta de ficar sozinho. Depois você pede para a enfermeira se já pode ir vê-lo, fica com Deus.
-Mara você está falando a verdade, o Fernando está bem mesmo, acho que estão mentindo sobre o estado dele.
-Não Paula, é porque não dormimos, viajamos a noite pra cá, é só isso, cansaço. Não fica preocupada. Descansa. Amanhã, você vai até o quarto do Fernando.
-O que aconteceu com ele?Onde está machucado!Você falou pra ele que estou bem, que não me deixaram ficar com ele?
-Já, já falei tudo isto!Ele está preocupado com você também!
-Então tá, amanhã eu vou lá. Fala que mandei um beijo!
-Deus me dá forças não estou agüentando, o que será do meu filho até amanhã?
-Paulo, o Mauro vai até São Paulo, buscar umas coisas pra Mara, você não quer ir com ele?
-Vou, não podemos fazer nada aqui, você vem?
-Não vou ficar aqui, depois a Rute me faz um pouco de companhia.
RUTE
Os dias se passaram sem novidades, a Paula teve alta no dia seguinte, fomos para casa da Mara, esperar ela se recuperar melhor. O Fernando depois da cirurgia entrou em coma, sem mudança alguma no quadro e sem perspectivas de melhora. Estamos unidos como família para vencer esta luta. A Paula tem se mostrado muito forte, pela sua vontade ficava no hospital o dia inteiro, foi preciso pulso firme para convencê-la a voltar pra casa depois da visita. A Mara e o Paulo não parecem fraquejar eles acreditam que o Fernando vai sair desta, não sei se a minha fé é pequena, mas quando os vejo tão firmes, convictos da vitória, fico questionando a Deus para que mude o meu coração e faça meus olhos enxergarem mais longe.
O Mauro conseguiu uns dias de folga, assim ele faz companhia para o Paulo, e estamos assim há uma semana, parece que o tempo parou e só nos resta aguardar. Não é possível fazer nada, os médicos não conseguem dar uma resposta sobre o estado do Fernando. Se ele melhorar, podem se passar semanas ou meses sem que nada aconteça. Os machucados já estão se cicatrizando, mas ele continua dormindo.
Preciso decidir o que fazer, não posso ficar aqui tanto tempo, tenho muitas coisas pra resolver, só não sei como falar pra Paula que vamos ter que ir embora, e deixar o Fernando aos cuidados da mãe dele. Não vai ser nada fácil. Esta espera está se tornando insuportável, cada dia mais difícil, buscamos todos os dias no hospital alguma mudança e nada. Continua tudo do mesmo jeito. Parece que o tempo parou.
PAULA
-Amor, tenho vindo nesta UTI todos os dias desde o acidente, não consigo ir embora, minha mãe não quer me deixar aqui, já se passou uma semana, abre os olhos e fala comigo, nos filmes quando a mocinha chega perto, ele abre os olhos, mas você não faz nada, não estou aguentando isto. Você estava com o cinto colocado corretamente, porque estou bem e você nesta situação. Minha mãe acha que vou dar trabalho ficando aqui, quebrei a perna, está com gesso, o que eu faço?Antes eu tinha com quem tirar as minhas dúvidas, você era meu porto seguro, agora ninguém me entende, preciso ficar aqui com você. Nós viemos parar aqui juntos e vamos ficar até o fim.
-Fernando, você consegue me ouvir, faz algum sinal, aperta minha mão, mexe a cabeça, fico aqui falando sem parar, será que sente dor, o seu rosto ainda está muito machucado, ontem perguntei pro médico quando tempo você pode ficar assim, e ele não sabe responder. Mas disse que estas coisas são muito imprevisíveis, pode ser que de uma hora pra outra o seu quadro mude, e eu queria tá aqui com você.
Sabe aquelas mensagens que deixou gravada no celular, então, a gente não ouviu ainda, decidimos que só vamos ouvi-la quando sair daqui, queremos rir junto com você, não temos forças pra ouvir o que disse enquanto aguardava o socorro, o que importa é que está vivo e não ter mensagem de despedida nenhuma, você vai voltar e nós vamos casar, ter os nossos filhos, formar uma família.
-Quantos será que vamos ter?A gente nunca falou sobre isso, tanto que a gente conversava e agora vejo que não falamos tanta coisa importante.
-Amor, acorda, tô sofrendo muito de ver você assim, todos os dias venho aqui na esperança de encontrar alguma coisa diferente e continua tudo do mesmo jeito, até quando vai ficar assim?
Aqui na UTI não pode entrar muitas visitas, todo mundo tá bravo comigo, porque quero vir aqui todos os dias, e tem outras pessoas, mas não quero nem saber, vou vir e pronto. Estamos na casa da sua mãe, mas meus pais já estão querendo ir embora, se eu não vier amanhã é porque não consegui convencê-los a me deixar ficar, mas volto assim que tirar o gesso.
-Tchau, meu amor vou ficar morrendo de saudades!Agora vou deixar sua mãe entrar porque logo
acaba o período de visitas, se pudesse ficava o dia inteiro aqui!
-Até que enfim, dona Paula!Pensamos que a senhora não ia mais voltar, era só uns minutinhos, tem um monte de gente querendo vê o Fernando.
-Desculpa, Mara, mas é que precisava falar com o Fernando, e não adianta falar que ele não ouve porque sei que ouve, minha mãe tá querendo ir embora e não quer me deixar ficar, ela acha que vou dar trabalho pra você.
-Tá bom, meu amor, deixa eu ir lá, depois a gente conversa sobre isto.
-Mãe, será que a Mara deixa eu ficar aqui, não queria ir embora!
-Paula, como vai ficar aqui?E a escola?Você precisa retomar a sua vida, o Fernando vai ficar aqui sabe Deus até quando, não pode se enterrar aqui com ele.
-Mãe, não fala assim, eu amo o Fernando e se tiver que parar a
minha vida pra ficar aqui com ele, eu vou.
-Paula, até aqui aceitei as suas vontades, nós ainda não conversamos sobre a mentira grave que nos contou, e este assunto está encerrado, amanhã depois da visita, nós vamos pra casa, e esse nós inclui você, faz uma semana que estou aqui por causa deste acidente, e não vou tolerar mais nenhum questionamento, assunto encerrado!
-A gente não tem culpa do acidente!O motorista do caminhão, admitiu que dormiu no volante!
-É, mas foram vocês que decidiram estar ali, escolheram mentir pra nós, e estavam lá na estrada quando o motorista dormiu, se estivesse em casa, nada disso teria acontecido!
-Isso não é verdade, às vezes acontecem acidentes dentro de casa.
-Chega, Paula!Não quero mais discutir com você, estamos todos cansados, vamos pra casa, já está muito tempo em pé com este gesso, o médico pediu para que repousasse o máximo que pudesse.
-Tem horas que eu fico tão irritada com a minha mãe, é tão incompreensiva, me trata como se eu tivesse 05 anos!Puxa vida, não posso deixar o Fernando sozinho, ele precisa muito de mim!
-Mauro?Estava dormindo?Acabamos de chegar, trouxe a Paula na frente pra ela descansar um pouco, depois o Paulo vai buscar a Mara.
Falei com a Paula sobre a nossa decisão de ir embora amanhã, você não pode ficar sem ir ao trabalho e a semana de licença já acabou, ela não quer ir, acha que tem que ficar aqui, depois de muita discussão ela concordou em ir, depois que tirar o gesso ela volta e fica aqui, se o
Fernando não tiver saído do hospital.
-Você viu ele, acha que pode melhorar rápido?
-Vi, não quero ser pessimista, a Maura está tão confiante, que mulher forte!Mas não tô acreditando que ele vai se recuperar, se você vê ele, vai se assustar!Pode até ser que se recupere, mas não será logo!Precisa ir no hospital para entender o que estou dizendo!
-Não quis ir, o Paulo queria que eu fosse no lugar dele, não gosto de entrar em hospital!Não sei o que faria se ao invés do Fernando fosse a Paula nesta situação!Não quero nem pensar!
-Rute, não briga com a Paula, ela está muito fragilizada com este acidente.
-E o que quer que eu faça, deixa ela aqui, quem vai cuidar dela, a Mara, com todos os problemas que
ela está enfrentando, vou deixar a Paula dando mais trabalho?
-Não amor, não é isso, só falei pra não brigar com ela.
-Você não quer entrar em conflito, mas também não quer fazer o que ela quer, é fácil assim, você é o papai bonzinho e eu a bruxa malvada. Ela tá lá no quarto espumando de raiva, vai lá, agradar a filhinha!
-Droga é sempre assim, o Mauro não quer brigar com a Paula, e sobra pra mim, sou sempre a megera intransigente!
-Rute, esqueci de falar, o pastor ligou, querendo notícias, está todo mundo orando por nós, queriam saber novidades do Bruno, ele conseguiu conversar um pouco com o Paulo.
-Eu não entrei na UTI, mas a Paula disse que ele está do mesmo jeito, está em coma, se alimentando por uma sonda, tiveram que fazer uma
traqueostomia, fazem um corte na traquéia pra ajudar a respiração, eles fazem isso quando a pessoa vai precisar de ajuda pra respirar durante muito tempo. Pelo jeito o processo vai ser demorado!
-Vou tomar um banho, depois vou descansar um pouco, e arrumar as nossas coisas depois da visita de amanhã, nós vamos pra casa.
-Tá, eu vou falar com a Paula, acalmar a ferinha!
-Vai lá conversa com ela, quem sabe ela consegue entender que queremos sempre o seu bem!Faz ela entender que não pode ficar aqui dando mais trabalho pra Mara. Em casa ela se recupera mais rápido e volta se quiser depois que tirar o gesso. A Paula sempre foi muito mimada por você, por isso não entende a nossa decisão de ir embora. Temos uma vida além deste acidente e precisamos voltar!
-Paula, meu amor é o papai, abre a porta!Quero conversar com você!
-Pai, me deixa não quero falar com ninguém, estou muito triste, quero ficar sozinha!
-Deixa o papai entrar, prometo ficar quietinho, só respondo se você falar primeiro.
MARA
-Filho?Está me ouvindo?É a mamãe!Você consegue saber quem está aqui? Tá me enxergando? Ouve a minha voz?
-Meu amor, se pudesse, trocava de lugar com você, hoje conversei com médico ele não sabe dizer quanto tempo terá que ficar aqui, pode ser um mês, dois, três, às vezes penso que é até bom que não veja nada, do jeito que é impaciente ia enlouquecer o hospital inteiro, tem muita gente preocupada com você, o telefone não para de tocar, os irmãos da igreja, toda hora liga um. A Paula falou que a Ana quer ir embora amanhã?A Paula não quer ir, mas nem falei pra ela ficar, porque com a perna engessada, não dá pra eu cuidar de você e dela, vou ter que ficar preocupada com comida, com
os curativos que tem que trocar, deixa ela ficar com a mãe, quando tirar o gesso, se ainda estiver aqui, ela volta.
Não estou com cabeça pra ficar preocupada com visita em casa.
-Filho, quando vai reagir deste coma, até quando vai ficar assim parado, fico tão aflita de te ver assim!A sua vó, está doida pra ver você, mas eu falei pra ela não vir por enquanto, deixa o seu rosto desinchar um pouco, sair os hematomas, não quero que ela se assuste.
Só hoje parei pra pensar na grande confusão que você e a Paula criaram, pensei que aquela menina tivesse mais juízo, mesmo que você quisesse, se ela não topasse, nada disso teria acontecido!
A Rute fala como se toda a culpa fosse sua, só porque você é mais velho, até estes dias você, era o melhor partido do mundo pra filha dela, agora, já está querendo levar
a filha pra longe, acho que é pra que ela esqueça você.
-Mas não liga não, a mamãe tá aqui, nunca abandonaremos você, pode demorar o tempo que for.
Estou até pensando em mudar pra cá por enquanto, agora com a Internet, dá até pro seu pai trabalhar aqui, vou falar pra ele trazer alguns processos e ir estudando enquanto você melhora, já liguei na escola e pedi pra colocarem uma professora substituta, a diretora foi muito compreensiva, disse que posso ficar o tempo que quiser, eu tinha umas licenças prêmio pra tirar, agora é hora.
-Ontem ligou um amigo seu da faculdade, acho que o nome dele é Humberto, ele conhece a Paula também, queria saber de noticias suas, ele vai pegar todas as matérias e está montando um arquivo pra você estudar depois,
muito simpático e prestativo este moço.
-Tá acabando o horário da visita, vou deixar você descansar, tenha fé meu filho, vai melhorar, não vejo a hora de chegar aqui e ver estes olhinhos brilhando de novo. Beijos, fica com Deus. Não desiste, vai vencer!
-Meu Deus como é difícil ver o meu filhinho ali naquela cama sem reação nenhuma, meu coração parece que vai abrir e ainda tenho que me mostrar forte pra todo
mundo, porque se eu desmontar, ninguém vai ficar de pé, e meu filho precisa da mãe dele de cabeça erguida.
-Aconteça o que acontecer não vou deixar de crer no meu milagre!
-Alô,Paulo?Onde você está, já saí da visita, já está aqui?Se quiser falo com a enfermeira pra deixar você entrar um pouquinho!
-Tô aqui na frente, não achei lugar pra estacionar, não eu, não quero
entrar, ver o Fernando naquela situação me deixa abalado!
-É pra você é fácil, não ver o Bruno não vai fazer com que esta situação se resolva, a dor de vê-lo naquela cama é que me faz ficar mais forte pra lutar.
-Não é que não tô sofrendo, só não quero entrar lá!
-Você que sabe, já estou aqui fora, vem me pegar.
O caminho do hospital até em casa foi feito em silêncio. Só se ouvia o barulho da nossa respiração. Estou com tanta raiva que tenho vontade de esganá-lo! Onde já se viu um pai que se recusa a entrar na UTI para ver o filho?
O Paulo não consegue ficar muito tempo sem falar, pra ele é uma afronta não ir conversando durante o trajeto, mas estou tão cansada destas atitudes infantis, que não quero nem olhar pra cara dele, parece que que não vai amadurecer nunca.
Todo dia ele tem uma desculpa diferente pra não ir, qualquer um que chega ele cede a vez.
Queria fechar os olhos e só acordar quando este pesadelo passar, tô tão cansada!
O carro nem parou direito, abri a porta e saí na frente.
O duro de estar com visitas é isto, estampar um sorriso e receber bem as pessoas, afinal ninguém tem culpa das suas frustrações.
-Oi Rute, cadê a Paula e o Mauro?
-A Paula tá descansando no quarto e o Mauro tá lá
com ela.
-Vocês vão embora amanhã mesmo?
-Vamos, Mara, deixei a loja sozinha a semana inteira, o Mauro precisa voltar pro banco, não dá pra ficar aqui indefinidamente, a Paula não quer ir de jeito nenhum, nesta situação é a melhor coisa a fazer, você já está sobrecarregada com o Fernando, não dá pra ficar
com a responsabilidade de cuidar dela, ela vai espumando mais vai, quando estiver em casa vai entender que é o melhor, hora que puder tirar o gesso, ela volta.
-Rute, eu entendo o sentimento da Paula, é como se ela estivesse abandonando o Fernando, não vou insistir com você, porque estou no meu limite de cansaço e ficar com a Paula aqui é mais uma responsabilidade, já discuti com o Paulo no carro porque ele não quer ir visitar o Fernando, pra não sofrer, acha que isto tem cabimento?
-Mara, você tem toda razão, mas tem um pouco de paciência, estes nossos maridos, parecem adolescentes, não querem arcar com o peso da responsabilidade, sobra tudo pra gente, são como meninos que esqueceram de crescer, lembra da história do Peter Pan, é assim.
-Já arrumei todas as coisas vou deixar tudo pronto amanhã depois da visita, a gente vai.
-Deixa eu ir preparar alguma coisa pro jantar. -Vai tomar um banho e descansar um pouco, pode deixar que faço o jantar, vou fazer uma comidinha especial, um peixe assado, bem leve.
-Depois que a Paula voltou do hospital o Mauro foi ficar com ela no quarto e eu sai pra dar uma volta.
Espairecer um pouco, parei o carro e fui andar um pouco a pé, a praia de Ilha Bela dependendo do horário, não tem muitos espaços com areia, a água chega até a mureta de proteção, fui caminhando olhando aqueles barcos ancorados, lindos, de todos os tamanhos e cores. No ancoradouro alguns navios desciam turistas, a movimentação era intensa, muitos argentinos, e
Ilha Bela é um ponto obrigatório de parada, eles chegam pela manhã, ficam na praia, fazem compras, o artesanato local é muito rico, bem próximo de onde os navios param tem um centro comercial com muitas lojas, restaurantes. Fiquei ali sentada olhando a movimentação.
No meio daquele burburinho de línguas estranhas me chamou a atenção umas esculturas de lata e comecei a caminhar no meio delas, um trabalho lindo, com detalhes tão minuciosos que me fizeram ficar ali parada extasiada com tanta beleza, o artista é o escultor Gilmar Pinna, não conhecia o seu trabalho, mas a beleza do trabalho emociona até mesmo alguém que como eu não entende muito de artes. Bela iniciativa. É a vida surgindo no meio de um monte latas.
As horas passaram voando, preciso voltar a este lugar numa
ocasião melhor, conhecer este paraíso com calma.
Li num folheto de informações turísticas que são muitas praias, tem pra todos os gostos, se essa aqui já é linda, imagina as outras.
-Vou passar em alguma peixaria, e comprar um peixe pra fazer assado hoje à noite, vai ser um jantarzinho especial, ver se melhora um pouco os ânimos.
Adoro cozinhar em ocasiões especiais, no dia a dia não sou muito fã de cozinha não, mas hoje vou caprichar.
Olhei no balcão de peixes e vi uma tainha de um tamanho ideal pra fazer assada.
Chegando em casa, fiz uma farofinha com bacon, cebola, pedacinhos pequenos de linguiça defumada, um pouquinho de sal e pimenta, deixei reservado. Temperei a tainha com limão, alho e sal, coloquei pra descansar, até a
hora de assar, não é preciso fazer muito antes o peixe assa depressa.
-Enquanto você descansa um pouco. Vou colocando o peixe pra assar.
-Rute você tem sido uma benção na minha vida, obrigada por estar aqui neste momento, foi muito bom ter alguém cuidando de tudo, foi muito importante aqui, obrigada, gostaria que esta sua visita tivesse acontecido de outra maneira, talvez se a nossa viagem pra cá não tivesse sido protelada tantas vezes a história seria outra.
-Mara, não fica assim, sei que se a situação fosse inversa você agiria da mesma forma, Deus tem um propósito em todas as coisas e penso que nada acontece por acaso, não deu certo de virmos porque não era a hora certa. Tenho certeza de que voltaremos numa ocasião mais feliz, pra comemorar a felicidade dos nossos filhos, é por eles que estamos aqui.
-Vai lá tomar um banho, quero te contar que fiz um passeio hoje a tarde, fui caminhar lá na orla onde tem aqueles barcos ancorados.
-Hum que delícia!O Fernando adora peixes, agora ele não está aqui pra comer com a gente.
-Mara não chora, o Fernando vai sair desta, fica firme, Não pode fraquejar agora!Ele precisa de você.
-Ai, Rute, tá tão difícil e pensar que ninguém pode me dizer quanto tempo isto vai durar. Estou cansada de me fazer de forte, no fundo estou um caco, não tenho coragem pra nada, queria abrir um buraco e entrar, só sair quando o Fernando melhorasse!
-Chega, não vamos mais falar disto, vai tomar o seu banho e vamos crer que o Fernando vai melhorar, que ele pode acordar a qualquer momento, vai dar aquele sorriso alegre que ele tem, e
perguntar com a cara mais sem vergonha, nossa por que vocês estão assim, com estas caras de enterro, não aconteceu nada!
-É verdade, é bem a cara dele mesmo!Vou aproveitar e pedir desculpas pro Paulo fui um pouco mal criada com ele.
-Eu também gosto de resolver as diferenças na hora, não fico remoendo nada, é por isso que estamos casadas há tanto tempo e felizes como namoradinhos, oro pra que o Fernando e a Paula sejam assim também.
-Vou fazer o jantar, fala pro Mauro vir me ajudar aqui na cozinha!
O peixe ficou descansando naquele tempero, vou colocar numa assadeira, colocar aquela farofa dentro fechar com palitos para não derramar, cobrir com papel alumínio e colocar no forno por uma hora.
O peixe não é muito grande, vai assar rapidinho, depois tiro o papel e deixo dourar. Vou fazer um arroz branco, sobrou um pouco da farofa, e fazer uma salada com folhas verdes, acho que na geladeira tem alface e rúcula, e pronto o nosso jantar será uma delícia!
-Hum que cheirinho delicioso, o que está fazendo?
-Oi Paulo, à tarde, fui dar uma volta na praia e comprei um peixe, tô fazendo assado, já está quase pronto, a Mara deitou?
-A gente conversou um pouco, ela tomou banho e foi descansar.
-Paulo, queria pedir pra você ficar mais próximo da Mara, parece que ela está enfrentando tudo de maneira muito controlada, mas por dentro está destruída, amanhã nós vamos embora, fica mais ao seu lado, ela precisa ser amparada, se sentir protegida, está muito fragilizada, nunca tivemos a
oportunidade de nos aproximar, a gente se vê na igreja, nos cumprimentamos, mas nunca nos aproximamos de verdade, e agora vejo quanto tempo perdemos, poderíamos ter nos unido mais em favor dos nossos filhos, a Mara está muito triste porque você não quer visitar o Fernando.
-Eu sei Ana, vou mudar o meu comportamento, é que me dá uma tristeza de ver o meu filho, tão cheio de vida, ali, imóvel naquela cama, todo machucado, não tinha percebido o quanto esta situação estava deixando a Mara infeliz, pode ir embora tranquila que vou dar todo o apoio que ela precisa.
-O Mauro está lá no quarto com a Paula, falei pra ele vir me ajudar com o jantar, ele fingiu que nem me ouviu.
-Pode deixar que eu te ajudo, o que você precisa?
-Arruma a mesa, coloca os pratos e os talheres, você quer fazer um suco?
-Tá, eu faço!
Mauro chegou de mansinho.
-Cheguei, tá precisando de ajuda?
-Agora?Eu queria há uma hora atrás!
-Desculpa, estava conversando com a Paula, fazendo ela entender o seu ponto de vista.
-Mauro, não é o meu ponto de vista, é a decisão certa a ser tomada, a Paula não é mais uma criança que precise ser convencida do que é certo ou errado, não estou contra a nossa filha, ela está sendo infantil!Chega deste assunto que já estou irritada!Vai lá ajudar o Paulo, arrumar a mesa e fazer um suco.
O Paulo antes de comermos orou ao senhor:
-Pai em nome de Jesus, queremos agradecer por tudo que o senhor tem feito nas nossas vidas, foram
dias muito difíceis, mas o Senhor preparou estes anjos para estarem aqui conosco neste momento difícil, obrigada por estreitar os nossos laços, abençoa esta família e nos perdoa por não criarmos oportunidades para estarmos juntos, eles são os amigos que na hora da angústia se tornam irmãos. Muito obrigado, sabemos que em tudo o senhor tem propósito, ainda que não entendemos, tudo o que o senhor faz é bom, é o melhor, amanhã eles estão voltando para casa, abençoa eles neste retorno, livra-os de todo o mal,
e esperamos que em breve eles retornem, num momento festivo.
Meus Deus muito obrigado por este alimento, que o senhor nunca deixe faltar em nossas mesas o pão de cada dia. Abençoa esta família que esteve conosco neste momento tão difícil de maneira muito especial. Eu te agradeço em
nome do pai, do filho e do espírito santo. Amém!
O jantar transcorreu em clima de despedida, a Mara chorosa, a Paula de cara fechada, e o restante tentando alegrar o ambiente, mas no meu coração sei que tomei a decisão certa.
O dia amanheceu com sol. A Mara levantou cedo e preparou um café da manhã especial, a mesa foi colocada na varanda e aos poucos foi chegando, o Mauro, o Paulo, a Paula, a refeição foi feita em clima de despedida, parece que nada ia mudar o humor da Paula, os seus olhos estavam opacos, sem brilho, não havia alegria neles. Saimos, em seguida, o carro já estava arrumado com as bagagens, vamos passar no hospital dar uma olhada no Fernando e depois seguir viagem.
No hospital, conseguimos uma autorização com a enfermeira chefe para podermos todos ver o
Bruno por alguns momentos, entrei primeiro com o Mauro, não sei se todas as UTI`S tem este cheiro de morte, mas no olhar triste daquelas enfermeiras era possível enxergar a certeza de que nenhuma delas acreditava na recuperação do Fernando.
-Fê, tô aqui, vim me despedir, não quero ir, mas a minha mãe insiste que é melhor eu voltar até me recuperar, pra não dar trabalho pra sua mãe.
-Meu amor vou ficar contanto os minutos pra que eu possa voltar, o meu coração vai ficar aqui. Nem por um minuto vou deixar de pensar em você. Volto assim que puder, fica com Deus, te amo mais do que tudo, você é a coisa mais importante que tenho, melhora logo, quero poder sentir o seu abraço de novo, choro o tempo todo de arrependimento, não devia ter vindo com você pra cá
escondido, nada disso teria acontecido, me perdoa meu amor!
A enfermeira chegou de mansinho e pediu que eu saísse do quarto.
-Srta. Paula, é melhor sair, está muito nervosa, o Fernando não está vendo as suas lágrimas, mas temos outros pacientes aqui, podem ficar emocionados.
A Paula chegou na recepção com os olhos vermelhos e inchados de tanto chorar.
-Já?Pensei que ia ficar mais um pouco!
-É, mas a enfermeira pediu que eu saísse do quarto, porque estava chorando!Nem isso posso fazer, todo mundo quer mandar na minha vida!
-Paula, não é isso meu amor, aquelas pessoas estão doentes, não podem ser incomodadas, não vai adiantar nada você ficar lá chorando, o Fernando não pode ouvir você!
-Pode sim, sei que ele sente quando estou lá!
-Tá, bom Paula, não vamos começar outra discussão, vamos embora enquanto o sol não está muito forte, almoçamos no caminho!
-Mara muito obrigada pela hospedagem, fica com Deus, qualquer coisa que precisar não hesite em me ligar, nem que seja pra desabafar um pouco.
A estrada estava livre, perto da hora do almoço, chegamos ao Trevo de Bertioga, ali tem uma pastelaria bem famosa.
-Paula, vamos dar uma paradinha aqui e almoçar?
-Vocês que sabem, não quero comer nada!Estou sem fome!
-Filha, você não pode ficar sem comer, não vai ajudar em nada esta greve de fome.
-Não é greve de fome, só não quero comer, posso?
-Quer parar aqui?Vamos descer e comer um pastel, deixa a Paula.
O cardápio era extenso, pastéis de todos os sabores, os mais improváveis. O Mauro escolheu um de palmito, resolvi acompanhá-lo, outro dia arrisco um sabor diferente, o dia não estava pra surpresas.
Saímos de Bertioga e fomos em direção a rodovia que liga Bertioga ao Guarujá para pegar a Rodovia dos Imigrantes neste horário é o caminho mais tranquilo.
Chegamos em casa por volta das 14h00, enquanto o Mauro descarregava o carro, resolvi dar um pulinho na loja, ver como estava as coisas.
A Elisa era mesmo muito competente, a loja estava impecável, tudo arrumado, todas as vendas lançadas, ainda bem que posso contar com uma funcionária responsável. Como será que estão as coisas lá em casa?
-Paula, você quer alguma coisa pra comer?O papai faz um lanchinho, quer?
-Tá bom, quero, me ajuda levar as minhas coisas pro quarto?
-Papai ajuda, depois faço o lanchinho, você quer ficar aqui na sala ou vai pro seu quarto?
-Vou pro quarto, preciso descansar as pernas, este gesso é um tormento!
-Vamos, quer segurar em mim, ou se apóia no corrimão da escada?
-Acho que dá pra subir devagarinho, vou subir um degrau por vez!
-Vou ter que evitar de ficar subindo e descendo, é muito incômodo.
-É melhor ficar quietinha num lugar só, se fosse você, ficaria aqui na sala.
-Não, não quero, prefiro ficar no meu quarto!
-Pai, não quero falar com ninguém, vou tirar o meu telefone da
tomada!Se alguém ligar fala que estou dormindo.
-Meu amor, não pode fazer isso, está todo mundo ansioso para saber como você está, vai aparecer um monte de visitas, não dá pra falar que não quer recebe-las.
-Ah, tá bom, se alguém ligar me chama.
A conversa ainda não terminara quando o telefone começou a tocar.
-Alô, oi Mauro, é a Mara, só liguei pra saber se chegaram bem?
-Oi, Mara, já ia ligar pra vocês, chegamos bem sim, A Rute foi até a loja e a Paula está no quarto descansando, obrigado por se preocupar!
-E o Fernando, você foi no hospital, agora a tarde?
-Fui, tudo na mesma, não sei que é pior, chegar e receber a noticia de que está tudo do mesmo jeito, ou se houve alguma alteração!
-Mara, tenha fé, está noticia boa vai chegar!
-Eu tenho fé Mauro, mas está tão difícil, ver o meu filho naquela situação! Manda um beijo pra Paula e pra Rute. Fiquem com Deus!
-Mando sim, você também fica bem, beijos, tchau!
A volta às aulas foi feita num clima de muita apreensão, os amigos, querendo ajudar, sem saber como, as perguntas sobre o acidente vinham de todos os lados. Mas aos poucos, os dias foram passando e a vida no colégio, começava retornar ao normal, com o passar dos dias o acidente foi esquecido, mais uns dias e ninguém se lembrava do ocorrido.
Liguei todos os dias para saber noticias do Fernando, e continuava tudo na mesma, o tempo passava e não havia mudanças.
No fim da semana o médico vai tirar o gesso e fazer uns exames
ver se já posso ficar sem, espero que dê tudo certo, quero voltar e ficar um pouco com o Fernando.
A boa notícia veio no final da semana, não seria preciso ficar com gesso todo o período, vou ficar livre deste tormento!Vou poder ver o Fernando no fim de semana.
-Alô, Mara?Tudo bem?Tirei o gesso hoje, posso ir pra sua casa, quero ver o Fernando!
-Que bom Paula! Pode vir sim, só se prepara porque o Fernando não está nada bem, os médicos me deixaram sem esperanças hoje, que o quadro dele parece irreversível, chegaram a falar sobre a possibilidade de doar os seus órgãos caso o quadro dele piore ainda mais.
-Mara, o Fernando não vai morrer!Nós vamos fazer ele lutar, estes médicos não sabem de nada. Vou falar com os meus pais ver se eles podem me levar, se
não, vou de ônibus. Ligo depois. Fica com Deus, nós não vamos desistir!
Quando o táxi parou na porta, parece que não havia ninguém, o silêncio era total, até as flores do jardim pareciam tristes, nem avisei a Mara que viria, quis fazer uma surpresa, espero que ela esteja em casa.
Toquei a campainha com o coração ansioso, será que eles tinham saído?
-Paula? Que bom que veio, fiquei esperando sua ligação!
-Oi Mara, quis fazer uma surpresa!E o Fernando?
-Nada, meu anjo, continua na mesma, estou ficando sem forças, pra continuar lutando, se você ver como ele está, dá dó, está tão magro, abatido, desde que foi embora, ele ficou muito debilitado, precisa se preparar pra hora da visita. E a sua perna ficou boa?
-Mara, ele vai melhorar, vamos acreditar em Deus, num milagre! A perna está um pouco dolorida, vou ter que fazer um pouco de fisioterapia.
Naquele mesmo dia, á tarde fui ao hospital, nenhum aviso me preparou para aquele momento.
Quando entrei na UTI e vi aquele corpo desfalecido, magro, abatido, sem vida, levei um choque, aquele não era o meu Fernando, como alguém pode se transformar assim em poucos dias, aqueles aparelhos ligados, a garganta com aquele buraco, fazia um barulho triste, só naquele momento pude entender porque a Mara estava tão abatida, sem fé. O quadro era muito triste. Ver o Fernando ali, quase sem vida partiu meu coração. Não quero chorar, pra não deixar a Mara mais triste, mas não estou aguentando segurar.
Olhar pra Mara naquele corredor frio me esperando, tentando
encontrar forças pra continuar firme, foi o fim do meu controle, desabei, nos abraçamos e choramos todas as lágrimas guardadas desde o acidente. O choro era de muita dor, mas de alguma maneira foi um choro de alívio, naquele momento pudemos entregar o Fernando nas mãos de Deus, as nossas forças tinham sido vencidas, só mesmo um milagre para reverter aquela situação.
E depois deste momento parece que os nossos sentimentos foram cauterizados não doía mais, estávamos preparadas para tudo que viesse acontecer, até mesmo a perda do nosso amor. Meu e da Mara. Ficamos ali abraçadas por muito tempo. Até que o Paulo, veio ao nosso encontro e nos levou pra casa. Nenhuma palavra precisava ser dita, ele entendeu o nosso silêncio.
Voltei ao hospital no domingo, antes de ir embora, a Mara ia me
levar até a rodoviária, com a promessa de que no próximo fim de semana eu voltaria.
O tempo passou, a vida entrava numa rotina sem graça. No sábado pela manhã eu descia pra ver o Fernando, algumas vezes meu pai me trouxe, em outras vinha de ônibus. Os meses foram passando sem novidades, o estado de saúde dele também, nem melhora, nem piora. No começo eu descia com o coração ansioso, hoje vou chegar lá e ele vai estar melhor, mas quando abria a porta da UTI e via que continuava tudo do mesmo jeito, dava uma vontade de desistir,
não voltar mais, ficar em casa esperando quando houvesse alguma mudança.
Minha mãe me disse várias vezes:Paula até quando vai ficar deste jeito? O Fernando não tem perspectivas de melhora, nem os médicos acreditam em uma
recuperação, precisa voltar a viver! Não sai mais de casa! Não vai a igreja! Deixou todos os seus amigos! Está se enterrando viva, junto com o Fernando. A mãe dele, tudo bem, é filho, tem que ficar lá até o fim, mas você é jovem, tem uma vida inteira pela frente, quantos meses mais vai ficar nesta vida. Este acidente não aconteceu por sua culpa.
Deus te deu uma chance de viver, e você está jogando fora, se enterrando com toda vida que tem pela frente. Se dá a chance de conhecer outras pessoas, sair com os amigos, conhecer gente nova. em aquele amigo do Fernando o Humberto, dá uma chance pra ele, vejo que ele gosta de você. Quem sabe se você der uma oportunidade para u novo relacionamento.
A conversa acabou de forma bem desagradável, falei coisas pra minha mãe que ela não merecia
ouvir, agora até entendo os seus sentimentos, mas naquela hora me deu uma raiva, é como se estivesse traindo o Fernando, só de pensar em diversão. A minha vida desde o acidente tem sido de casa pra escola, e no fim de semana vir pra Ilha Bela chorar com a Mara.
Preciso aprender a viver enquanto o Fernando está lá, retomar a minha vida, mas está muito difícil, com o Fernando nesta situação indefinida, não dá pra pensar em nada. No próximo final de semana tem uma festa de aniversário de uma amiga, não venho pra cá.
A Mara fez uma cara de espanto, não gostou muito. Ela tem se tornado um pouco amarga, ficou triste com a perspectiva de eu ir me divertir e o Fernando no hospital. Fico entre a cruz e a espada, de um lado minha família querendo que eu retome a minha vida. Do outro a Mara querendo
que eu fique lá ao lado dele. Tem horas que acho que a minha família tem razão, não posso parar de viver, em outras, consigo entender o sentimento da Mara, como posso me divertir, e o seu filho?Só vendo como ele está para entender, às vezes sinto que aquele corpo inerte, não é o meu Fernando. É como se ele não existisse mais e um outro estranho tomasse o seu lugar.
Fico pensando que se algum dia ele sair do coma, será que vou continuar amando o homem que se levantar daquela cama, penso se será a mesma pessoa. Já se passou tanto tempo, estou tão diferente, será que o Fernando vai ser o mesmo?
A festa na casa da Marcela, foi muito boa, todos os meus amigos estavam lá, conversamos, demos risada, foi tudo muito divertido. Pra falar a verdade nem me lembrei do Fernando. Neste final
de semana decidi não ir visitá-lo.Estou me sentindo culpada, será que estou esquecendo o Fernando?
-Mara, tudo bem?E o Fernando, você foi ao hospital?
-Fui, não tenho nada mais importante que o meu filho, nenhuma mudança, ele está do mesmo jeito.
-Mara, não deixei de ver o Fernando porque tenho coisas mais importantes pra fazer, você precisa entender que não posso me enterrar junto com vocês neste hospital!Já fazem seis meses que aconteceu o acidente, eu estou viva, foi só uma festinha de aniversário de uma amiga muito querida, não significa que não me importo com o Fernando.
-Paula, me desculpa, estou agindo como uma tirana, é que estou me apoiando em você, pra continuar esta luta, quando me disse que não ia vir por causa da festa me senti traída, sem apoio. Você é a
única pessoa que entende a minha dor e sofre comigo, foi como se estivesse me abandonando!
-Mara, não vou deixar você sozinha, pode contar comigo, ainda que o Fernando tivesse morrido, não ia tirar você da minha vida, somos uma família, não pensa que vou deixar você sozinha. Ainda vamos contar esta história pros seus netos.
PAULA
Os sábados começam a chegar cada vez mais rápido, ás vezes penso em não ir visitar o Fernando, mas fico cheia de culpas, penso na Mara e desisto. Já pedi pra Deus em oração pra que ele desse uma definição nesta história. Tem coisas que Deus faz que a gente não entende, já questionei, já perguntei, não encontrei respostas. Dá vontade de colocar Deus contra a parede e perguntar:Qual é o teu objetivo?Não estou aguentando mais. Os conflitos aqui em casa estão cada vez mais freqüentes por causa desta situação. Não tenho mais vida, é escola e hospital no fim de semana. Fico entre a cruz e a espada, uns me dizem para viver, outros pra eu não desistir. Já se passaram dois anos e o Fernando dormindo, como
se não existisse nada a sua volta, até a sua aparência está tranqüila, às vezes dá uma vontade de chacoalhar ele para que acorde. A Mara continua firme, incansável, ao lado dele. Minha sogra é uma guerreira, sogra?Soou tão pesado, nem sei mais como chamá-la. Em nenhum momento a vi desanimar nesta situação, ela tem certeza de que ele vai sair desta. Luta contra todos que querem desistir do Fernando, médicos, hospital, convênio, até entrar na justiça para garantir um atendimento de qualidade. Me sinto sufocada com tanta dedicação, porque ela quer que eu tenha esta mesma disciplina, e está cada dia mais difícil acompanhá-la.Hoje o que eu queria mesmo era sair dar uma volta no shopping, conversar com as amigas, conhecer pessoas diferentes. Mas a culpa não me deixa. Fico me
perguntando o que será que Deus quer?
O que eu faço? Vivo ou espero o Fernando? Aos poucos a imagem dele está desaparecendo, naquele hospital só tem um estranho dormindo. É como se um outro estivesse ali. Me sinto culpada por não enxergar o meu amor naquele corpo. Fico me perguntando, como será o Fernando se ele acordar. Será que vou continuar amando da mesma maneira? Estou ficando angustiada com esta demora, o tempo está passando e eu aqui a beira da estrada esperando o Fernando passar. Será que ele vai chegar?
MARA
Todas as manhãs acordo e pergunto pra Deus:Será hoje o dia?Vou chegar no hospital e ver o meu filho acordado?Ninguém acredita mais nesta possibilidade, mas não vou desistir, é esta certeza que me coloca de pé, fisicamente o meu filho foi sarado, só dependo de Deus, para que ele acorde, e enquanto estiver vivo vou acordar todos os dias com esta certeza. A minha vida parou desde o dia do acidente, deixei a escola, pedi uma licença, já se passaram dois anos, o Paulo fica um pouco aqui, e um pouco em São Paulo. Às vezes ele vem até o hospital, não é sempre, mas já melhorou, antes, só vinha pra me buscar. Luto com todas as minhas forças para manter o Fernando no hospital. Dizem os médicos que não há mais nada a fazer. Que ele não precisa mais de cuidados médicos, que
posso levá-lo pra casa. Não sei até quando vou conseguir mantê-lo aqui. É como se levá-lo pra casa fosse aceitar que o meu filho saudável não vai mais voltar, que tenho que aceitar esta situação com resignação, mas não consigo. Vou levar o meu filho de volta pra casa, quando melhorar.
Não tenho mais vida própria, há dois anos que não vou ao cabeleireiro, não compro roupas, não vou ao médico. Vivo em função do Fernando, o Paulo me pergunta às vezes se o nosso filho tivesse morrido, se eu ia me enterrar junto. Me lembrei de uma passagem na bíblia, que conta a estória de Davi que implorava a Deus para que o seu filho vivesse dia e noite e quando ele morreu, levantou-se, foi comer e retomou a vida como se nada tivesse acontecido.
Enquanto houver um fio de esperança, ficarei aqui, o amanhã
só Deus sabe. Pode ser hoje o dia da minha vitória.É isto que põe de pé.
Cheguei ao hospital muito animada, como há muito tempo não conseguia, logo na entrada a enfermeira me disse que a equipe médica queria conversar comigo. O meu coração quase parou.
-Jesus, entra comigo nesta sala, a sua palavra me diz que o coração do homem está nas suas mãos, convence eles de que aqui é o melhor lugar para o Fernando ficar enquanto se recupera. Me ajuda, meu Deus! Não permita que nada aconteça ao meu filho, estou com medo!
-Bom dia, dona Márcia!
-Bom dia, algum problema com o Fernando?Aconteceu alguma coisa?
-Calma, o quadro do Fernando continua o mesmo, só queremos comunicar a senhora que ontem fizemos alguns exames no seu
filho, e houve algumas pequenas alterações nestes exames, pode ser que o organismo dele esteja reagindo. Não posso garantir que este quadro se reverta, mas há uma esperança.
-Meu Deus, obrigada, sinto que a hora do Fernando está chegando!Doutor estou tão feliz!Meu filho vai sarar!
-Dona Mara, ainda é muito cedo para ter esta certeza!Não se empolgue muito!
-Doutor, fazem 750 dias que espero por esta notícia!Não importa o tempo, meu filho vai melhorar! --Não se preocupe, aprendi a esperar o tempo de Deus. Nestes dias de sofrimento, aprendi que quando a mão do homem não alcança. Deus começa a agir.
-Estou tão feliz, que tenho vontade de gritar, pro mundo inteiro ouvir! O meu Deus é fiel, o amém de todas as coisas está nas suas
mãos! Muitas pessoas, me disseram pra desistir, levar o Fernando pra casa e esperar ele morrer. Alguns até oravam comigo pra que fosse feita a vontade de Deus, como se esta vontade fosse que o meu filho morresse!
-Dona Mara, não me envergonho de dizer que eu fui um destes que duvidei da sua insistência, fui um daqueles que achavam melhor desocupar a UTI e disponibilizar a vaga para alguém que tivesse mais chances! A senhora foi uma guerreira! A luta ainda não terminou!Tenha paciência, qualquer mudança eu comunico a senhora!
-O senhor não conhece o Deus que eu sirvo!Ele pode fazer maravilhas! Obrigada doutor, hoje é o dia mais feliz dos últimos anos.
A equipe de enfermagem estava me esperando quando saí, depois de tanto tempo nasceu uma grande amizade.
-Meninas!Estou tão feliz, o médico me disse que o Fernando teve uma pequena melhora!
-Mara, a gente já sabia, só não falamos nada para não estragar a surpresa!
-Você mais do ninguém merece esta alegria! Você abriu mão da sua vida pra lutar com o seu filho, e agora vai sair daqui vitoriosa porque você nos fez acreditar!
-Gente, preciso ver o Fernando e depois falar com o Paulo e com a Paula!
O Fernando aos meus olhos estava da mesma maneira, não consegui enxergar nenhuma mudança, mas se o médico estava dizendo, quem sou eu pra duvidar.
-Filho, você está me ouvindo?Meu amor estou tão feliz!O médico me chamou para dizer que está melhorando, é verdade que foi só uma pequena melhora, mas já é um começo!O que importa é que vai sair daqui! Reage, filho!Vou pra
casa contar para o seu pai, ele foi trabalhar em São Paulo hoje, tinha uma audiência no fórum. Fica com Deus meu amor!
Não vejo a hora de chegar em casa e contar a todos sobre o Fernando.
-Alô, Paulo?Amor você não vai acreditar!O médico do Fernando, me chamou na sala dele, pra falar que fez uns exames no Fernando e houve algumas mudanças, pequenas, mas ele acha que é uma esperança!
-Meu Deus, obrigada, meu filho vai voltar!
-Amor, estou terminando umas coisas aqui e já vou embora, quero ir ver o meu filho!
-Agora, né! Antes você não queria ir!Marido de pouca fé!
-Eu sei amor, estou em dívida com você, vou te amar muito a vida inteira para compensar!
-Hum, tá bom!Não precisa vir correndo, não mudou nada no quadro externo, você não
consegue enxergar nenhuma mudança, só nos exames, vem tranqüilo, amanhã a gente volta, quem sabe não temos novidade!
-Liga pra Paula, veja se ela não quer descer com você!
-Tá vou ligar, acho que ela está na faculdade, mas eu falo com a Rute!
-Alô, Rute! É o Paulo, a Paula está aí?
-Não, não está!Aconteceu alguma coisa? O Fernando está bem?
-Não nada de grave, é que os médicos fizeram uns exames, e detectaram uma pequena melhora no quadro do Fernando, queria saber se a Paula não quer descer comigo?
-Mas ele saiu do coma?
-Não Rute, não dá pra ver ainda, só nos exames!
-Ah, Paulo, a Paula tem aula esta semana na faculdade!Ela já vai no sábado!Perder uma semana de aula neste momento vai ser muito complicado!
-Tá bom, Rute! Me desculpa, só achei que a Paula gostaria de estar lá ao lado do Fernando. Dê o recado a ela!
-Paulo?Já chegou amor!Cadê a Paula?
-Mara a Paula não veio, falei com a Rute mas ela foi tão grosseira, que a Paula não podia ficar perdendo aula, que ela já vem todo sábado, como a gente fosse culpado da filha dela vir pra cá todos os fins de semana! Não sabia que a Rute estava contrária a isto!
-É, a Paula já havia me dito, é porque não foi a filha dela que ficou com as seqüelas do acidente, neste momento poderia ser eu a não querer que o Fernando estivesse ao lado da filha dela!
-Amor deixa pra lá, nós somos os pais dele e estamos muito felizes é só isto que importa!
-Estou com vontade de me arrumar, ir ao cabeleireiro, fazer as
unhas, comprar umas roupas novas!
-Ah, é assim, quer ficar bonita pro Fernando, e eu?
-Bobo, eu estava triste, agora estou muito feliz, é por isto que quero me arrumar. Vamos até o centro, lá tem umas lojas, vamos caminhar um pouco a beira mar. O meu coração está querendo sair pela boca. Queria tanto compartilhar esta alegria com a Paula!
PAULA
Hoje acordei pensando no Fernando, em todos os planos que fizemos, cada dia que passa eles parecem mais distantes. Quando ele entrou na faculdade, combinamos de fazer o curso de odontologia, pra gente montar o consultório e trabalhar juntos. O Fernando estava dois anos na frente. Agora já o alcancei, podemos até estudar na mesma classe, mas cadê ele? Continua lá naquele hospital, sem nenhuma expectativa de melhorar .Quanto tempo ainda vai demorar esta situação? Queria tanto retomar a minha vida, os meus sonhos .Fico pensando se fiz a escolha certa do curso. Como será prosseguir com o projeto do consultório sem o Fernando. Não sei se vai dar pra
esquecer!Talvez, fosse melhor, escolher outra coisa.
Se eu soubesse, qual caminho seguir!Seria tudo tão mais fácil!
-Mãe? Cheguei! Tá tudo bem! Estou com uma fome!
-Nossa, Paula! Você nem chegou direito e já está procurando comida!Nem falou, oi!
-Oi, mãezinha, tudo bem com você, o que tem aí pra comer?
-Aconteceu alguma coisa, você está meio estranha!
-Não nada, é só problemas com uns fornecedores da loja!
-Ah, isto é fácil de resolver: troca de fornecedor!
-É se fosse tão fácil assim, a gente não teria problemas!
-Tô brincando, só não deixa estas coisas de trabalho, te deixarem mal humorada!
-Falou a psicóloga! Pode deixar, vou seguir as recomendações!
-Vou almoçar, tô verde de fome!
-Como sempre né!
-Não tenho culpa se nesta casa mora a melhor cozinheira do mundo!
-Você falou com a Mara hoje?Notícias do Fernando?
-Não, acho que continua na mesma, nem liguei, no sábado eu vou pra lá!
-De novo, Paula?Todo final de semana é isto!Você não tem mais tempo pra nada!Sua avó está reclamando que nem visitá-la você vai, podia deixar de ir pelo menos um final de semana no mês e ficar aqui, cuidando da sua vida!
-Mãe, por favor!Não vamos começar esta discussão novamente!Vamos ver, deixa chegar mais pro fim da semana, eu resolvo, se vou ou não, combinado?
Nem vou falar que o Paulo ligou, depois digo que esqueci, se eles pensam que vou deixar enterrarem a minha filha naquele hospital como eles estão fazendo, estão
enganados. O Mauro acha que estou exagerando, mas sinto que estão sufocando a Paula com esta história, ela é muito jovem pra ficar nesta situação. Se continuarem com esta cobrança, vou ser obrigada a falar com Mara com todas as letras pra darem uma folga pra Paula.
Com certeza ela não vai gostar nem um pouco, mas não me importo, quem sabe eles acordam, já fazem dois anos que ficam lá sem viver, só velando aquele menino.
E se ele não melhorar?Nem sei o que vai ser da vida dela, se não tomar cuidado o Paulo com esta coisa de ficar aqui pra trabalhar, vai é arrumar outra!
PAULA
Andei fazendo umas pesquisas sobre pessoas que estão em coma há muito tempo, fiquei impressionada com as descobertas. Hoje em dia quase 70% das pessoas em coma, conseguem retornar sem seqüelas, dependendo da gravidade da lesão os danos são irreparáveis, lesões superiores a 80% do córtex cerebral, a região onde é formada a consciência, não tem muitas chances de cura, precisam de ajuda mecânica para respirar e se alimentar. Nesta reportagem falava também que os neurônios tem uma capacidade de regeneração impressionante. Tudo isto aliada aos avanços da medicina neste fazem a gente ter mais esperanças a cada dia. Preciso falar com a Mara se foi feito algum exame capaz de flagrar o cérebro do Fernando em
atividade. Quem sabe não houve alguma mudança no quadro dele que não podem ser vistas a olho nu. Mais tarde vou ligar pra ela.
O telefone tocou várias vezes e ninguém atendeu, será que a Mara saiu, neste horário ela já saiu da visita. Depois ligo de novo. Vou ligar no celular.
-Estranho, liguei várias vezes no celular da Mara e em casa e ninguém atende, será que aconteceu alguma coisa com o Fernando?
-Você não vai atender o celular?
-Não, é a Paula deve estar com a consciência pesada, não quis vir e nem me ligou para comentar sobre a melhora do Fernando!
-Pode ser que a Rute não tenha falado com ela sobre o meu recado, ela sabe que a Paula viria correndo.
-Paulo!Coitada!Eu aqui feliz e ao mesmo tempo com raiva, e ela talvez nem saiba do Fernando!
-Deixa eu ligar e falar com ela!
-Alô, Paula? Tudo bem?
-Oi, Mara! Você não está em casa?Liguei várias vezes, nem no celular consegui falar com você.
-Me desculpa, sai para dar uma volta e não ouvi o celular tocando, só agora!
-Está tudo bem?
-Tá, só queria falar sobre uma reportagem que li na revista Veja, sobre pessoas em coma, muito interessante, que saíram do coma depois de muito tempo, fala também sobre uns exames que monitoram a atividade cerebral, se houve alguma mudança. Você sabe se lá no hospital eles fizeram algum exame deste tipo no Fernando?
-Paula, você falou com a sua mãe hoje?
-Falei, ela está em casa, por quê?
-É muita coincidência você me ligar pra falar sobre isto, hoje o Paulo ligou pra sua casa pra contar que os médicos fizeram de novo estes exames e notaram alguma melhora no quadro do Fernando, parece que houve uma regeneração da área afetada no acidente e ele pode estar melhorando, o Paulo ligou pra ver se você queria vir pra cá com ele, sua mãe não te deu o recado?
-Nossa, Mara! Estou tão feliz!Queria estar aí com vocês!
-A minha mãe deve ter esquecido, ela está com problemas na loja! Hoje terminou a minha semana de provas. Amanhã cedo vou pra aí!
-Vem mesmo, estamos te esperando, com certeza a Rute deve ter esquecido!Ela não ia fazer de propósito!
-Tá bom, Mara, beijos, quando estiver saindo ligo pra você!
-Beijos, deixa pra vir amanhã, vai chegar aqui à noite!
-Mãe, onde você está?
-Aqui no quarto!
-Que houve?Está com uma cara estranha!
-Vou perguntar só pra ter certeza, porque não estou acreditando!
-Você por um acaso esqueceu de me dar um recado importante, hoje?Foi sem querer, ou fez de caso pensado?
-Ah, a Mara já ligou pra você?
-Não estou acreditando que teve coragem de fazer isto comigo!
-A Mara e o Paulo, pensam que você não tem vida própria que tudo gira em torno do Fernando! Já to cheia deles colocarem nas suas costas este fardo tão pesado pra uma menina de 20 anos, você tem a sua vida, a sua faculdade, os seus amigos, e o Paulo falou que não dava pra ver estas mudanças no estado físico, só nos exames, você precisava ir pra lá por quê?
-Mãe não tem o direito de me tratar como uma criança, isto que
fez foi imperdoável!Você não podia ter agido assim!A vida é minha sou eu que decido como conduzi-la, se estou perdendo o meu tempo é problema meu!Cuida da sua vida, que eu cuido da minha!
-Gente, o que está acontecendo, dá pra ouvir esta gritaria lá de fora, o que houve?
-Pergunta pra sua esposa, é ela que deve explicações!
-Rute, o que houve?Nunca vi vocês discutindo desta maneira!
-A sua filha ficou brava, porque o Paulo ligou aqui pra falar que o Fernando teve uma pequena melhora, que nem dá pra ver, e queria vir buscar a Paula pra ir visitá-lo, achei melhor não falar nada, ela está em semana de provas, ia perder aula à toa!
-Rute, você tem noção da gravidade do que você fez?Há dois anos a nossa filha espera por uma noticia dessas e você toma a decisão de não falar nada? Ela tem
toda a razão de estar brava deste jeito!
-Você fica sempre do lado da Paula, ninguém consegue enxergar que os pais do Fernando estão sufocando a Paula com esta história, eles são os pais que fiquem lá esperando o dia em que ele resolver sarar ou morrer!
-Amor, olha as bobagens que está falando, a nossa filha, poderia ser ela nesta situação, você não ia ficar nem um pouco feliz, se agissem assim. A Mara e o Paulo já sofreram muito pra serem tratados com tanta indelicadeza, acho que devia pensar um pouco no que fez, e pedir desculpas ao Paulo e a Paula.
-Não vou pedir nada, agi pensando no bem da minha filha, já estou cheia desta história, e se não entenderem, paciência!
O quarto estava com a porta fechada e as luzes apagadas, ouço a Paula chorando.
-Filha, abre a porta pro papai!Deixa eu falar com você!
-Pai, me deixa sozinha!Não quero falar com ninguém!
-Abre, prometo não falar nada, só quero ficar um pouquinho com você! Abre aqui!
-Tá, entra!
-Meu bem, a sua mãe tomou esta decisão com a melhor das intenções, queria te proteger.
-Pai, não sou mais uma criança que precisa de proteção!Ela não tinha o direito de fazer isto!
-Não fica brava, ela está meio nervosa, com uns problemas da loja!
-E o que o fato dela mentir sobre o Fernando tem a ver com isto!
-Nada, tenha um pouco de paciência com ela, logo se arrepende e põe a cabeça no lugar e entende que não agiu direito.
-O que você quer fazer?Quer ir pra lá?
-Tá bom pai, acabei extrapolando também, quero ir ver o Fernando, a Mara me pediu só pra ir amanhã, porque ia chegar lá muito tarde!
-É melhor mesmo, levo você logo cedo na rodoviária!
-Você é o melhor pai do mundo, obrigada!
-Vou arrumar as minhas coisas!
-Antes disso, vai lá e conversa com a sua mãe direito, pede desculpas, e resolve esta situação.
-Mas, pai, ela que mentiu pra mim e eu tenho que pedir desculpas, é só que faltava!
-Paula, a sua mãe não mentiu, só omitiu um recado, com a intenção de proteger você, não fez por mal.
-Vai lá, diz que está tudo bem, que as suas provas terminaram hoje e que vai faltar a faculdade pra ir ver o Fernando. Se sair sem por um ponto final nesta situação, este assunto ainda vai render muitas discussões!
-Tá bom, eu vou!
-Mãe, posso entrar?
-Claro, filha entra, me dá um abraço!
-Não precisa falar nada, sei que agi errado, queria te pedir desculpas!Agi pensando no seu bem!
-Eu sei, mas vê se da próxima vez, deixa eu decidir, promete?
-Prometo, meu amor, não quero brigar mais!
-Me desculpa também, não devia ter gritado com você!
-Já falei com o papai, amanhã cedo vou pra casa da Mara.
-Mas, e as provas da faculdade?
-Terminou hoje, o resto da semana não vai ter nada importante, alguns professores vão revisar matérias em que o pessoal foi mal nas provas.
-Tá, então vai arrumar suas coisas. Dá um beijo.
Beijo e abraço de perdão tem um sabor especial, parece que são mais intensos. Detesto brigar com
a minha mãe, ainda bem que a gente não fica com raiva, não guarda mágoas, a gente esquece logo as diferenças, aliás, não há diferença que resista a um abraço cheio de amor.
-Nossa!Hoje é quinta feira e o Terminal Rodoviário do Tietê, está lotado!Será que este povo não trabalha, não, é tanta gente viajando!Nem comprei passagem, pensei que não ia ter ninguém.
-Passagem comprada, agora é só esperar o embarque. Pra quem nunca visitou Ilha Bela antes, já bati o meu recorde, nem sei quantas vezes fiz este percurso nos últimos dois anos, virou caminho da roça!
-Ai meu Deus!Hoje está tudo demorado, até na balsa, tenho a sensação de que está mais congestionada! Estou tão ansiosa de chegar e ver o Fernando! Está fila não anda! Vou ligar pra Mara!
-Alô, Mara!Já estou na balsa, você pode me pegar aqui!Queria chegar e ver o Fernando antes do almoço!
-Claro, Paula!Mas não fica muito ansiosa, a gente não consegue enxergar nenhuma mudança, os médicos me pediram para ter mais paciência, a alteração é pequena!
-Eu sei, Mara, mas só de saber que há uma pequena chance, me enche de ansiedade!
-Ei, está esquecendo da palavra:Não estejais ansiosos por coisa alguma!
-É falar é fácil, quero ver quem consegue se controlar numa situação destas, só conheço você!
-É só Deus sabe como anda o meu coração, vou pedir para o Paulo, me deixar no hospital e depois buscar você, assim quando chegar o tempo é todo seu!
Hoje a chegada na UTI do hospital tinha um clima diferente, parece que todas as pessoas sabiam sobre o Fernando, encontrei algumas no
corredor que estavam tão felizes com a minha vitória que pareciam ter vínculos afetivos comigo, não sei quem deu a notícia, mas recebi tantos abraços que fiquei emocionada, depois de dois anos abrindo aquelas portas sem nenhuma expectativa, era quase mecânica a minha reação. Mas hoje não tinha alguma coisa diferente, até aquele cheiro de UTI estava mais suave. Quando a bíblia fala sobre a fé, que é o firme fundamento daquilo que não se vê mas que se espera, é a mais pura verdade. Quando a gente consegue ter a certeza de que Deus está fazendo alguma coisa, toda a situação muda, o problema é que precisamos nos sustentar em algo que se possa tocar com as mãos.
Abri a porta da UTI com o coração alegre, certa de que logo meu filho estará de volta. Tem um louvor antigo que diz assim:Vejo uma pequena nuvem, do tamanho da
mão de um homem, e este é o sinal....É assim que me vejo agora, eu que andava tão sem expectativas, agora encontrei forças pra esperar.
-Fernando, meu filho, como você está?Não vejo a hora de ver você acordado de novo, os médicos estão confiantes! A Paula me falou sobre uma revista, que trazia uma reportagem sobre pessoas que estão como você, e muitas pessoas saíram sem seqüelas, alguns mudaram a personalidade, se tornaram diferentes do que eram, outros sem paladar, mas você meu amor vai acordar sem seqüelas nenhuma, mesmo depois de todo este tempo, o que faltar pra medicina, Deus vai completar! Fernando você está me ouvindo, na reportagem falava de pessoas que tinham reações quando estimuladas, será que você tem estas reações?
A enfermeira chegou de mansinho.
-Dona Mara?O seu marido pediu pra avisar que a srta. Paula já está ai.
-Ah, obrigada, vou deixar ela entrar! Fica com Deus filho, vê se acorda logo, belo adormecido!
-Oi, Paula, como está, tudo bem?Seus pais?
-Oi Mara, tudo, estou tão ansiosa, não vejo a hora de ver o Fernando!
-Calma, pode ir lá, já está liberado, eles pediram pra aguardar, enquanto faziam um procedimento em outro paciente.
-Vou lavar as mãos e colocar o avental enquanto isto!
Senti aquelas lágrimas sobre o meu rosto como se fossem gotas de chuva de verão alegres, cheia de força. Abri os olhos com dificuldade e vi a Paula me olhando sem conseguir acreditar, olhos arregalados, sem conseguir falar nada, abri a boca, para perguntar o que estava
acontecendo e a voz não saiu. Os olhos só conseguiram se manifestar com lágrimas, nem sei porque estava chorando.
-Fernando!Fernando!Você está me vendo?Meu amor, você esperou eu chegar aqui para acordar, prometi muitas vezes que estaria do seu lado quando decidisse voltar!Obrigada meu Deus, obrigada!
-O que eu faço agora?Enfermeira!Enfermeira!O Fernando abriu os olhos, ele estava chorando!
-Calma, você pode estar enganada!As lágrimas podem ser as suas, ouvi você chorando. Ele está do mesmo jeito.
-Vocês não estão entendendo, ele olhou pra mim como se quisesse dizer alguma coisa e começou a sair lágrimas dos olhos dele! Chama o médico!
-Dona Paula, calma o médico não pode fazer nada, vamos esperar
mais um pouco e ver se há alguma reação mais visível.
-Tá, ta bom, vou falar com a Mara!
-Mara você não vai acreditar o Fernando melhorou, ele abriu os olhos, saiu lágrimas deles, ele ficou me olhando como se quisesse dizer alguma coisa!
-Meu Deus eu sabia que a minha hora estava chegando!Obrigada, obrigada, nem sei como agradecer!Vou ver o Fernando!
-Mara, espera! A enfermeira pediu que eu saísse e aguardasse noticias aqui fora para não incomodar os outros pacientes. Ele fechou os olhos de novo, a enfermeira disse que eu posso estar enganada, que eu estava chorando que podem ter sido as minhas lágrimas nos olhos dele, mas eu tenho certeza que não o Fernando abriu os olhos sim!
-Eu acredito em você Paula, a nossa luta acabou!
-O Paulo foi tomar um café, vamos falar com ele!
Entraram no café correndo, sem conseguir se controlar.
-Amor, você não vai acreditar!................
A visita da tarde e da manhã seguinte aconteceram sem novidades, o Fernando continuava sem mudanças no quadro. Era uma agonia, porque ele não acordava. Será que imaginei tudo isto?
Eram pouco mais de duas horas da tarde do dia 25 de março de 2010, quando a enfermeira ouviu alguém pedindo água.
-Estou com sede, você pode me dar um copo de água?Vai ficar ai parecendo uma palerma, parada?
Ela ficou sem reação não sabia se pegava á água ou se chamava o médico, nem parecia que era uma enfermeira tão competente e experiente, ficou sem saber o que fazer. Em nenhum momento ela sequer acreditou nas palavras da
namorada do paciente, mas ela estava falando a verdade.
Aquela UTI não foi a mesma depois daquele instante foi uma movimentação intensa de médicos e enfermeiros, uns tentando encontrar respostas, outros movidos pela curiosidade, até os familiares de outros pacientes queriam ver o que estava acontecendo, que se esqueceram de avisar a parte mais interessada que era a família do paciente.
Os três entraram na portaria e notaram alguma coisa de diferente, parece que algo havia acontecido. O moço do guichê de estacionamento é que perguntou:
-A senhora já sabe do seu filho?
-Sabe o quê, aconteceu alguma coisa?
-É o seu filho acordou, eles não avisaram pra senhora?
Mara precisou ser amparada para não cair, as pernas foram sumindo,
uma sensação de fraqueza, o coração parecia que ia sair do peito, de tão forte que batia. Depois de alguns minutos que parecia uma eternidade, ela conseguiu chegar até a recepção e a enfermeira chefe a colocou a par de tudo.
-Dona Mara, tudo bem com a senhora?
-Pelo amor de Deus, pára com esses rodeios, estou em tempo de explodir, onde está o meu filho?
-Não se preocupe, entendo o seu desespero, o Fernando acordou do coma, sem seqüelas nenhuma, parece que acordou de um sono profundo.
-Onde ele está, preciso falar com meu filho!
-Calma, dona Mara, ele estava agitado, um pouco confuso, foi ministrado um sedativo para que ele pudesse relaxar um pouco.
-Vocês estão loucos, o Fernando passou os últimos dois anos
dormindo, e agora que acordou, tem que relaxar!Preciso vê-lo agora! -Só um momentinho, vou ver se o médico libera a sua entrada, vai demorar um pouco, ele está atendendo outro paciente.
O tempo caminhava lentamente, na verdade parece que tinha parado, tamanha a nossa ansiedade.
E aquela enfermeira que não voltava. A Mara estava a beira de um colapso de tanta agonia, parece que aqueles dois anos de espera desabaram sobre os seus ombros. O ser humano é mesmo um ser único, cada um reage de maneira diferente diante de situações adversas. O Paulo estava tranquilo, esperava com calma a volta da enfermeira. Eu fiquei extasiada, sem reação, como se estivesse sonhando, uma sensação de vazio. E a Mara que permaneceu firme todos estes
anos desmontou. A enfermeira chefe voltou logo com a autorização.
-Dona Mara, o médico autorizou a sua entrada, do seu marido e da srta. Paula.É uma visita bem rápida, para não deixar o Fernando cansado. Não fiquem fazendo perguntas, não falem do tempo que ele está aqui, evitem querer saber como ele se sentiu enquanto estava em coma. Alguns pacientes costumam ficar revoltados de saber quanto tempo estiveram desacordados. Deixem que ele fale sobre o quiser, apenas respondam o ele perguntar, falem sobre coisas banais, não o deixem emocionado!
A senhora dona Mara vá até o banheiro, retoma o controle das suas emoções, bebe uma água, e depois pode subir!
-Meus parabéns!A senhora foi uma mulher muito forte, não pode desmontar agora!
Parece que vou explodir! Já estou melhor, vou tomar uma água, rapidinho!
-Paula, você quer uma água?
-Obrigada, Mara! Não consigo engolir nada!
-Pronto, já me recuperei, vamos, vou exercer meu direito de mãe: vou entrar primeiro!Alguém tem alguma objeção?
-Não Mara, pode ir primeiro, você tem todo o direito!
Senti uma paz tão grande quando entrei naquela UTI, o Fernando estava com os olhos fechados, mas a expressão do rosto era diferente, antes a sensação era de tocar um boneco de cera, a gente espera uma reação, porque parece tão verdadeiro e ela não vem, quando coloquei a mão no seu rosto, senti que a vida havia retornado ao corpo do meu filho. Prometi que não ia chorar, agora era o tempo de rir, mas a emoção era tanta que os meus olhos foram
desobedientes, se deixaram levar pelo momento.
O Fernando parecia tão sereno ali, parecia que estava dormindo, tantas vezes me lembrei nesta mesma situação da estória da bela adormecida, e como num conto de fadas, o final foi feliz, o meu final também foi de alegria.
O toque suave daquela mão no meu rosto era tão bom, pareciam as mãos de um anjo, será que as mãos de um anjo eram assim tão cheias de amor?
Abri os olhos por um instante, era tão difícil eles pareciam pesar toneladas, ver a minha mãe ali o meu lado me deu uma sensação tão boa de estar protegido.
Que lugar será este?Quanto tempo estou aqui?O que será que aconteceu? Só consigo me lembrar do acidente, daquele moço que me emprestou o celular, de quando ele saiu pra procurar a Paula, depois
um vazio imenso, como se eu tivesse mergulhado na escuridão .Não sei há quanto tempo mas me lembro de ouvir a voz da Paula. Graças a Deus, ela está bem!
-Mãe?
-Fernando, meu filho!Estou tão feliz de ver que acordou! Está sentindo alguma coisa? Está com dor?Você lembra da mamãe? Tá me enxergando direito? Quer beber alguma coisa? Está com fome?
-Mãe, pelo amor de Deus!Está me deixando tonto com tantas perguntas!
-Ai, meu filho, me desculpa, nem sei o que estou dizendo, estou tão nervosa!
-Nervosa por quê? Estou bem, não sinto dores, já mexi as pernas, não tem gesso, acho que foi só o susto mesmo .Estava preocupado com você, como ia reagir quando soubesse do acidente, achei que
não iam conseguir localizar vocês no sítio. O sinal lá é tão ruim!
-É fiquei muito preocupada!Não devia ter me enganado deste jeito, depois a gente conversa sobre isto!
-Tá, bom!Prometo solenemente não mentir mais pra você!Até porque boca de mãe é uma coisa!
-Você conversou com o médico?Quero ir embora!Não sei porque, perguntei quando vou poder ir, ele desconversou, disse que talvez eu precise ficar mais um tempo em observação!Não entendi nada, estou me sentindo ótimo!
-É, eles devem fazer alguns exames para ter certeza de que está tudo bem, não dá ainda pra saber quanto tempo vai demorar!Você consegue se sentar?
-É eu tentei algumas vezes, é meio estranho, meu corpo parece pesado, mas dá pra sentar sim, tive um pouco de tontura, me ajuda aqui que vou sentar!
-Tem certeza, filho?Não é melhor chamar a enfermeira?
-Não, não precisa, estou bem!Só me ajuda levantar!
-Filho, toma cuidado!Não quero que se esforce sem necessidade!
-Se não conseguir nem me sentar como os médicos vão me dar alta?Nossa!Nem sei que dia é hoje!Quanto tempo estou aqui?
-Ai meu amor, isso não importa, me dá um abraço, senti tanta falta disto!
-Não tô entendo, parece que não me vê há tempos!
-Não é nada disso, só saudades!
-Tudo bem aí, não está sentindo nada?
-Não, tá tudo bem! Me dá um pouco de água, estou com uma sede!
-Toma! Bebe, bem devagar! Com bastante cuidado!
-Eh, ta me estranhando, sou o Fernando lembra, não sou mais um bebê, já tenho 20 anos!
-É eu sei, e como sei, me dá mais um abraço, que vou sair pra Paula e pro seu pai entrar!
-O velho tá aí também? Só eu mesmo pra mobilizar a família toda, eu sou o cara!
-Só você mesmo Fernando, pra brincar com uma coisa séria destas!
-Beijo, depois eu volto, se eles permitirem, se não só amanhã de manhã no horário de visitas.
-Oh, mãe!Isto aqui é muito chato, porque eu tô na UTI, pede pra me mudar pro quarto, não tem nem uma tv pra passar o tempo!
-Engraçado, achei que tinha me quebrado inteiro, nem tô de gesso!Não tô nem arranhado!
-Tá, depois a gente conversa, sobre isto!Fica com Deus!
-Fê, posso entrar?Tudo bem?
-Que cerimônia é essa? Tá tudo bem, não aconteceu nada comigo!
-Você está diferente!Parece mais adulta!
-Não, quer dizer, tá. Estou muito bem, agora com você aqui.
-E ai, os velhos brigaram muito?Fiquei pensando nisso, minha mãe nem falou nada!
-Fê, me dá um abraço, depois a gente fala sobre isso, estava tão preocupada!
-Eh, eu tô ótimo, pensei que o negócio tinha sido mais sério, quando vi aquele caminhão na minha frente e o carro caindo no barranco, tinha certeza que a gente não ia sobreviver, não dá nem pra acreditar!
-É, foi mesmo um milagre!Amor, estou tão feliz por você!
-Não tô entendendo, este entusiasmo todo!Pensou que eu tinha morrido?
-Pára Fernando, não quero nem pensar nisto!
-Amor, eu achei que tinha morrido, quando a gente caiu eu não conseguia ver você, não conseguia me mexer, aí apareceu um homem
que ficou lá comigo, e eu pedi o celular pra deixar uma mensagem pra você e pra minha mãe, e ele saiu pra te procurar e eu fiquei lá horas falando, falando sem parar. Ele mostrou pra vocês?
-Ele trouxe o celular, mas decidimos não ouvir, enquanto você não melhorasse!
-Melhorasse do quê?Fiquei tão mal assim?Quanto tempo estou aqui?
-Você ficou muito mal, só a sua mãe tinha a certeza de que não ia morrer, está aqui há bastante tempo.
-Como assim bastante tempo, não me lembro de nada depois de pegar o celular!
-Amor, depois a gente conversa sobre isto!Não é importante!O que importa é que está aqui, vivo, saudável, e estou muito feliz!
-Que é isso agora!Vai desviar o assunto, eu quero saber, droga, é da minha vida que estamos falando!
-Senhorita Paula?É melhor sair um pouco, o paciente não pode ficar agitado, é melhor deixá-lo descansar!
-Eu não quero descansar, não tô agitado, só quero saber quanto tempo estou aqui neste hospital? alguém pode me dizer!
-Calma!No tempo certo você vai saber, o senhor está em recuperação, não pode ficar alterado, aos poucos o senhor se lembrará de tudo!
-Amor, fica tranqüilo, prometo que depois eu conto tudo que aconteceu, a gente tem todo o tempo do mundo pra conversar, vou sair um pouco pro seu pai entrar!Fica com Deus!
-Não estou reconhecendo você, parece tão madura, está falando como se eu fosse uma criança, eu sou mais velho, lembra?
-E continua sem juízo!
-Dá um beijo, depois a gente conversa mais!
O Paulo andava de um lado para outro no corredor.
-Paulo?Pode ir o Fernando está ótimo, nem parece que esteve em coma, entra lá, ele está te esperando, ele quer saber o que aconteceu, quanto tempo ele está aqui, desconversei, mas ele continuou insistindo, a gente precisa ver com o médico o que fazer!
-Paula, enquanto o Paulo vai lá ver o Fernando, vamos falar com o médico sobre isto!
-Dr.?Podemos entrar?
-Claro, dona Mara!E aí viu o nosso paciente!
-Vi, nem sei como agradecer ao senhor, tamanha dedicação ao meu filho!
-Não fui eu que salvei o seu filho, a medicina tem bem pouco a ver com esta recuperação, este é mais um dos casos que a ciência não pode explicar!
-É mais o meu Deus tem a resposta para esta recuperação!Foi Ele que salvou a vida do Fernando!
-Eu acredito, queria poder contar com esta fé, em outros casos também!
-Dr., o meu Deus está sempre disposto a ajudar, é só clamar pelo seu socorro!
-Pode deixar, quando eu precisar, vou entrar em contato e pedir a sua ajuda!
-Dr., eu sei que o senhor é um homem muito ocupado, só vim perguntar, até onde eu posso falar a verdade pro Fernando, ele fica perguntando sobre o que aconteceu, quanto tempo ele está aqui?
É só falar a verdade, ou é melhor esperar?
-Dona Mara, não podemos omitir dele o fato de que esteve em coma durante dois anos, agora é preciso muito cuidado para falar que durante estes dois anos que esteve
aqui dormindo, a vida lá fora continuou, os amigos não serão os mesmos, a turma da escola já se formou, pode ser que a namorada esteja em outra.
-Não Dr., eu ainda estou aqui.
-Tô brincando Paula!Mas podia ter acontecido desta maneira. A vida passou e ele ficou.
-Num primeiro momento depois que passa a euforia, a alegria de estar vivo, vem um sentimento de revolta
muito grande, eles agridem os que estão mais perto.
Como vocês tem um relacionamento com Deus muito próximo, ele vai se virar contra ele, depois contra vocês. Uma coisa eu sei, ninguém tem uma experiência como esta e volta a vida da mesma maneira. Sempre fica uma sequela, nem sempre no corpo físico, às vezes no comportamento. Estas experiências de quase morte ainda é um mistério para a ciência,
quando achamos que avançamos um pouco, descobrimos que tem um abismo que nos separa da realidade. Não conseguimos explicar porque alguns pacientes mudam de personalidade, dependendo da parte do cérebro afetada, perdem o paladar, outros o movimento. O Fernando fizemos uma bateria de exames, que para surpresa de todos, não apresentou nenhuma alteração, do ponto de vista clínico, ele está ótimo, agora é só esperar, já começamos a introduzir uma alimentação por via oral bem leve, ele aceitou bem, agora a tarde vou descê-lo para o quarto, se tudo correr bem, amanhã ele vai pra casa.
-Nossa, dr., já?Pensei que ele ia ficar alguns dias aqui ainda!
-Pois é dona Mara, geralmente estes pacientes demoram algum tempo para voltar a realidade, o que não aconteceu com o seu filho, ele está ótimo, não quero correr o
risco de nenhuma contaminação por bactérias do próprio hospital, este é um local infestado delas. Tenho certeza de que ele será melhor cuidado em casa. Amanhã na alta, passo as orientações e medicamentos para casa!
-Meus parabéns, considere-se uma vencedora!
-Obrigada, Dr., não estou me aguentando de tanta alegria!
-Quanto a conversa sobre como contar pra ele sobre o coma, responda naturalmente as perguntas e a medida que a conversa for evoluindo dê detalhes sobre o acidente, tome cuidado para não deixá-lo emocionado, evite ficar chorando perto dele.
-Agora, que o paciente está melhor, precisa cuidar da senhora, algumas pessoas tem reações bastante estranhas depois de um trauma destes. Se cuida!
-Mais uma vez, obrigada, dr.!
-Já solicitei a transferência da UTI para o quarto, se vocês quiserem podem ir pra casa providenciar os pertences dele, hoje ainda ele vai descer para o quarto, lá pode ficar um acompanhante à noite e até as 21:00 hs quando se encerra o horário de visitas, os outros podem ficar.
-Vamos Paula!Dar um pulo em casa pegar algumas roupas para o Fernando, acho que ele não vê a hora de tomar um banho de chuveiro, mal sabe ele que fazem dois anos que ele não sabe o que é isto!
Paulo entrou na UTI apreensivo. Levou um susto quando encontrou o Fernando tão à vontade.
-E aí, velho, tudo bem?Parece que viu um fantasma!
-Oi, filho!Eu não esperava que estivesse tão bem!
-É foi só um susto!Eu estou ótimo, a enfermeira disse que só vai tirar
o soro e terminar esta medicação que eu vou descer pro quarto!
-Que bom filho!E você tá bem? Não está sentindo nada? Você já levantou? Não dói as pernas?
-Já a mamãe me ajudou a levantar, me senti um pouco estranho, um pouco tonto, mas depois melhorei, a enfermeira disse que é assim mesmo. Que alguns
pacientes demoram pra ficar em pé, que eu fui uma
surpresa, ela não sabe como. Não entendi nada, mas tudo bem.
-O que importa filho, é que está vivo, o resto a gente a gente vê depois.
-E a mãe ficou muito brava porque menti pra ela?
Achei estranho, ela não falou nada, já estava me preparando para ouvir duas horas de sermão, sobre sempre falar a verdade, nunca mentir e blá, blá.........
-É que agora ela está muito feliz por você, mas espera que você não vai escapar da dona Mara!
-E a Paula, tá tudo bem com ela, achei ela meio estranha, parece bem mais velha, não fisicamente, mas o jeito!Aconteceu alguma coisa?A Rute e o Mauro, ficaram muito bravos comigo?
-Filho, não tivemos tempo de ficar bravos com vocês, a única coisa que importava era a recuperação da sua saúde e da Paula, o resto ficou pra depois. O Mauro e a Rute vieram pra cá e ficaram conosco durante bastante tempo, esperando a Paula se recuperar, ela também ficou bastante ferida no acidente.
-Estranho não vi marca nenhuma, nem em mim.
-Você está há bastante tempo aqui no hospital, as feridas já cicatrizaram!
-Mas, como?Quanto tempo estou aqui?Porque ninguém quer falar sobre isto?
-Filho, você ficou gravemente ferido, esteve em coma, quase morreu, é preciso ir devagar, aos poucos vamos contando tudo, não tenha pressa, estamos agindo conforme orientação do médico.
-Tá bom, eu entendo, mas que dia é hoje?
-Você não tem jeito!Hoje é 26 de março!
-Nossa faz mais de um mês que estou aqui!
-Fernando, podemos falar disso outra hora, vamos descer pro quarto, depois teremos bastante tempo pra conversar!Vou pedir para Paula, fazer companhia pra você!
-Pode mas não vai escapar desta conversa, todos vocês estão muito suspeitos!Quero saber tudo!
-Argh! Você é extremamente impaciente, já disse. Vamos conversar depois!
-Posso entrar?
-Oi Paula, entra!Foi bom você chegar fica um pouco com o Fernando, que preciso resolver umas coisas com a enfermeira!
-Pode ir, Mara!Eu fico com ele!
-Se comportem, hein!
-Ai mãe, como você é boba!Até parece que a gente é criança!
-Nunca se sabe, vocês sempre me surpreendem!
-Vem cá, amor. Fica aqui pertinho! Que fiasco, esta nossa escapada!Sua mãe ficou muito brava?
-Fê você tem noção da gravidade de tudo que aconteceu!A gente podia ter morrido!E você fica brincando!Não sei como suportei tudo isso!Foi muito difícil enfrentar esta situação sozinha!
-Nossa, Paula, você ta falando igualzinho, minha mãe, relaxa! Já
foi, vira a página. Você fica repetindo a mesma coisa, o tempo todo! Tudo bem que teve esta situação, enfrentar a sua mãe, a minha, sozinha! Todo mundo erra!Mas que foi uma pena, não ter dado certo, foi! Planejei tudo com todo cuidado!Dá próxima vez, vai dar tudo certo!
-Fernandooo! Você não vai amadurecer nunca!Você fala como se fosse um adolescente sem responsabilidades!
-Nossa, que tá acontecendo com você!Bateu a cabeça no acidente!Parece minha coroa, falando, nem saí do hospital e a gente já tá brigando! Tá parecendo uma velha gagá, batendo na mesma tecla!
-Fê, aconteceu muita coisa enquanto esteve aqui no hospital, você não sabe de nada!
-Falô, a adulta! Que tal, começar me contando tudo que aconteceu!Assim eu não fico
fazendo papel de idiota, pra você, pra minha mãe, pro meu pai!Vocês estão me tratando como um débil mental!
-Fernando, o médico pediu pra ir devagar, você ficou muito tempo desacordado!
-É eu sei, mas agora eu já acordei, e estou muito bem das minhas faculdades mentais, posso muito bem saber o que aconteceu!
Quanto tempo que eu tô nesta droga de hospital!O que aconteceu comigo!Eu não tenho nenhum machucado, porque que eu estou aqui?
-Me responde, droga!Quanto tempo eu fiquei em coma?E você? O que aconteceu com você?Porque está tão estranha?Parece outra pessoa!Você é uma estranha! Não é a minha namorada! Tô me sentindo um moleque!Dá pra me explicar isso!Ou vai ficar de segredinho!Essa merda, dessa
enfermeira que não vem, me levar pro quarto!
-Fê, pára com isso!Você está numa UTI, tem outros pacientes, não fala alto!
-Quero que se dane! Vou continuar gritando, quem sabe vocês me escutam!Porque até agora não estamos nos entendendo!
-Fernando, calmaa! Fica quietinho que eu vou falar da minha recuperação!
-Depois do acidente, você foi encontrado primeiro, como eu caí do carro porque estava sem o cinto, eles não sabiam que eu estava lá, só quando encontraram você é que eles ficaram sabendo, e começaram a me procurar, demorou muitas horas, pensei que eu ia morrer naquele lugar, toda machucada, suja, sem forças nem pra gritar, até que um grupo dos bombeiros vieram com os cachorros, aí eles me acharam! Fiquei com tanto medo! Nunca me
senti tão desamparada como naquele momento! Eu não conseguia movimentar as pernas, porque tinham quebrado, só podia mexer o braço, quando ouvi o barulho dos bombeiros, comecei a chacoalhar o galho e o cachorro percebeu, e ficou latindo, até os bombeiros chegarem.
-Eu lembro dum cara que chegou do meu lado e eu pedi pra ele te procurar, ele me deixou o celular e eu fiquei lá falando no telefone, isso aconteceu mesmo, ou eu estava delirando?
-É ele chegou primeiro onde você estava, foi graças a ele que conseguimos sobreviver! Foi um anjo que Deus enviou naquele momento para nos ajudar! Depois ele veio aqui trazer o celular com o que você tinha falado, mas até hoje não tivemos coragem de ouvir, a sua mãe disse que só ia ouvir quando você se recuperasse.
-Ela nunca deixou de acreditar que você ia se recuperar.
-E você pensou que ia se livrar de mim?
-Você fica me interrompendo! Eu não termino de contar o que aconteceu!
-Tá bom vai, vou ficar quietinho!
-Você foi levado pro hospital antes de me encontrarem, eu não sei se fiquei um tempo desacordada, porque pra mim parecia uma eternidade o tempo que fiquei ali. Quando eu fui encontrada foi muito difícil me levar pra cima. Deu muito trabalho!
-É você tava meio cheinha mesmo, eu já tinha avisado!Você que não acreditou! Dá próxima vez você antes de viajar fica uns dias sem comer chocolate!
-Fernando, você é um imbecil!Não vou falar mais nada!
-Não, pára, tô brincando, não vou interromper mais!
-Quando conseguiram me tirar de lá a minha mãe já tinha chegado, eu consegui falar com ela, depois viemos pro hospital, eu fiquei aqui em observação, só quebrei a perna, engessaram e ficou tudo bem,
tive muitas escoriações pelo corpo mas não eram graves, sarou logo!
Durante alguns dias ninguém me falava de você, do seu estado de saúde, só depois que eu saí é que me contaram que estava em coma, sem nenhuma chance de sobreviver!
-Credo, Paula!Desse jeito parece que estou aqui por milagre!
-É mas foi, nem os médicos achavam que você ia sobreviver!
-É mas eu sou o cara! Tô aqui novinho em folha, pronto pra outra!
-Fica aí, brincando, viu, você não sabe nada do que passamos em todo este tempo!
-Que tempo?Você fala como se eu fosse a Bela adormecida!
-É foi mais ou menos isto!
-Paula, vou perguntar de novo, quanto tempo eu fiquei em coma?
-Pronto, cheguei, já acertei tudo, o quarto já está pronto, vamos?
-Fazer o que né dona Mara, a senhora chega sempre nas horas impróprias!Logo agora que eu ia desvendar o segredinho de vocês!
-Quer que eu saia? Volto numa outra hora mais conveniente!
-Não! Pode deixar, uma hora vocês vão ter que me falar!
-Depois, Fernando, depois!
-E você Paula vai continuar esta história depois!
-Vamos, seu pai tá esperando no quarto!
Sair daquela UTI gelada, fria, sem vida, empurrando a cadeira de rodas com o Fernando foi muito mais
emocionante do que todos os meus sonhos juntos. Ver o meu filho sair
daquele lugar, curado, saudável, foi além das minhas forças, não consegui caminhar mais, as forças das minhas pernas foram sumindo, precisei me apoiar na cadeira, é como se todo o sofrimento daqueles anos todos tivessem sido colocados sobre os meus ombros naquele instante. Fechei os olhos e lá no fim daquele corredor de horrores, onde tantas vezes eu passei sem enxergar uma saída, abatida, fraca, sem forças. Vi lá no fim do corredor, uma luz.
O sol refletido naquela janela pequena iluminava aquele corredor sombrio de maneira sobrenatural. Como se Deus me dissesse:Filha acabou, o amanhã chegou trazendo a vitória.
Eu e a Paula não falamos nada durante o trajeto até o quarto, mas as nossas lágrimas regaram o caminho, onde tantas vezes caminhamos desacreditadas. O choro durou muitos dias e muitas
noites, mas a nossa alegria veio ao amanhecer. Chegamos ao quarto soluçando de tanto chorar, nos abraçamos, e ali naquele momento, independente do rumo que as nossas vidas tomassem, sabíamos que uma podia contar com a outra para o que desse e viesse. Aquele laço não seria desfeito nunca.
- Tá loco, para com isso!Parece que vocês tão indo prum velório?O defunto ressuscitou!
-Pode fazer piadinha, filho, só nós duas sabemos o que passamos neste lugar, e ninguém pode apagar estas marcas, elas ficarão pra sempre!
- Nossa, Mara! Esqueci de falar com a minha mãe, nem falei que o Fernando já estava no quarto, vou ligar pra ela!
-Mãe quando eu vou sair daqui, o médico falou?
-Não sei, ele não disse, acho que não vai ser muito, você está bem.
-Vou deixar você descansar um pouco, enquanto isso vou comer alguma coisa. Daqui a pouco eu volto!
-Filho, você quer alguma coisa?
-Um Big Mac pode ser?
-Paulo!Não brinca, isto aqui é um hospital, não pode entrar comida de fora!
-Foi só uma brincadeirinha!
-Pai, trás escondido!
-Pode deixar!Ela nem vai ver!
-Vamos, Paula deixa estes dois aí, a vida deles era tentar me enganar, desde pequeno, queriam esconder tudo, mas nem uma vez eles conseguiram!
-Vamos, estou mesmo com fome!
O Fernando ficou ainda no hospital mais três dias que se arrastaram lentamente, com o Fernando intercalando alterações de humor insuportáveis, num momento era o Fernando de antes, carinhoso, educado, em outros um ogro,
grosso mal educado, impaciente, dava vontade de socar ele com tanta grosseria, não conhecia este lado dele. É impressionante como ele estava estranho parecia outra pessoa, e o pior é que ele também estava me achando diferente, como se a gente não tivesse nada em comum. Como se fossemos estranhos.
A explicação é simples, enquanto eu cresci, amadureci, terminei o ensino médio, entrei na faculdade, o Fernando ficou ali parado, dormindo, tento me colocar no lugar dele sempre que estas divergências aparecem, mas está cada vez mais difícil, penso que estou há tantos anos esperando por este momento e quando ele acontece, não é nada daquilo que eu esperava. O que compensa é que agora que o Fernando saiu do coma, minha mãe voltou a ser aquele amor, nem parece a mesma pessoa que não queria que eu
viesse nem visitá-lo, agora é toda sorrisos, se oferece até pra ficar aqui.
Dá uma vontade de falar pro Fernando tudo que aconteceu, o que ela queria que eu fizesse, mas depois mudo de idéia, esta conversa só ia trazer sofrimentos, não vale a pena.
Hoje o Fernando vai sair do hospital, amanhã vamos embora pra São Paulo, encerrar de vez o capítulo desta história triste. Ainda não conseguimos contar pro Fernando sobre tudo que aconteceu, falta falar exatamente o mais importante:Que ele ficou dormindo por quase 03 anos! Como será que ele vai reagir!E isto tem que ser feito hoje, porque quando as pessoas começarem a falar com ele, vão acabar contando este detalhe, vou ver com a Mara quem é que vai assumir esta responsabilidade!
-Mara, posso entrar?
-Claro, meu amor!Está precisando de alguma coisa?
-Não, na verdade queria falar com você sobre o Fernando. Como vamos contar a ele sobre o coma.
Ele vai sair do hospital hoje e em algum momento vai ter que saber, acho melhor a gente falar antes, fico preocupada com a reação dele!
-Estava pensando nisso agora, acho melhor contarmos logo mesmo, a gente conta antes dele sair, conversamos nós duas juntas, assim ele não vai descarregar a sua revolta em uma só!
Logo chegou a hora de enfrentarmos o nosso último desafio, como será que ele vai reagir, estou apreensiva, a Mara então, nem se fala.
-Podemos entrar?
-Tá louco!Pensei que iam me deixar aqui pra sempre, o médico já me deu alta faz um tempão!
E vocês não chegavam nunca, achei que tinham me esquecido!
- Calma, filho! A liberação de saída é meio complicada estava assinando a documentação afinal a sua internação foi muito longa, e antes de sairmos quero conversar com você sobre isso.
-Paula, que cara é essa, não estou gostando nada, nem parece que estão felizes porque vou pra casa!
-Fernando não é nada disso!É que precisamos conversar sobre algo muito importante que aconteceu com você!
-Vai fala logo que eu tô ficando bolado com esta história!
-Filho, você se lembra que quando acordou do coma nós falamos pra você que esteve em coma durante um tempo longo, mas não entramos em detalhes sobre quanto tempo foi isso?
-Ahn, e daí? Continua. Fala logo!
-Meu amor, tem paciência a sua mãe está tentando explicar a você que não foram alguns dias que
esteve dormindo, foram anos, na verdade, quase três anos!
-Você está louca!Como assim três anos!Ninguém fica em coma tantos anos e acorda normal sem nada!
-Pois é Fernando, você é um milagre, vamos dizer que Deus nos deu uma segunda chance! Até hoje não encontramos outra explicação que não seja esta. Durante quase 03 anos eu e a sua mãe estivemos aqui ao seu lado e a gente sabia que isto aconteceria, muitos desistiram de esperar, mas nós permanecemos firmes. Agora cabe a você aproveitar esta chance que Deus deu a você e viver a sua vida da melhor forma possível!
-Meu filho, não me arrependo em nenhum momento por todo o tempo que parei a minha vida para estar aqui ao seu lado, esperando você voltar.
-Parou a sua vida, como assim?
-É, deixei o meu trabalho, mudei pra casa da praia para estar mais perto de você!
-Que idiotice!Se eu estava em coma, pra quê vocês ficaram aqui. Podiam telefonar, quando e se eu acordasse o hospital avisava vocês!
-Fernando, eu não acredito que seja tão insensível, a ponto de falar estas bobagens pra sua mãe depois de tudo que ela passou por você! Não estou te reconhecendo!
-É mesmo, eu penso exatamente assim, que vocês foram duas bobas, e só pra completar aquele Fernando morreu, esse aqui, vai ser outro cara!
-Como assim, não estou entendendo! -Não fiquem pensando que porque vocês pararam a vida pra ficar aqui cuidando de mim, que vou ficar devendo obrigação a vocês por isso. Não pedi pra ninguém ficar aqui me velando, como se fosse
um defunto vivo. Vocês ficaram porque quiseram, problema de vocês, não quero ninguém esperando recompensas por isso.
-Fernando você é um grosso, onde se viu falar assim com a sua mãe! Seu moleque, você acha que algum dia pode pagar tudo o que ela fez por você! Está agindo como um garoto mimado! Peça desculpas a ela!
-Deixa, Paula, eu não esperava esta reação do Fernando, nunca pensei que depois de tudo isso este fosse o agradecimento dele pra mim!
-Vocês esperavam, o quê! Além de me esconderem o tempo que fiquei em coma, vem com esse papinho de sacrifício que fizeram, o sacrifício foi meu, de perder 03 anos da minha vida nesta droga de hospital! Vamos embora logo já tô com saco cheio deste lugar!
-Fernando, espera, vamos agradecer aos médicos e as enfermeiras que cuidaram de você!
-Agradecer pra quê, ele ganham pra isso!Você agradece o mecânico do seu carro depois que ele arruma e você paga, ninguém faz nada de graça, não!
-Fernando, que horror, você está ficando insuportável!
-E você, Paula, está parecendo uma velha coroca, cheia de querer dar lição de moral, vai se catar!
-Fica aí agradecendo o porteiro, a faxineira, a enfermeira, o médico, manda chamar o diretor do hospital também, que eu vou esperar lá fora!
-Mara!Não chora não!Ele está fazendo isto porque de alguma maneira quer se vingar em alguém sobre o tempo que perdeu da vida dele, e como estamos mais perto vai usar as pedras em nós, e estas que são atiradas de perto é que doem mais, não liga não,
daqui a pouco ele recupera a razão, vamos ter paciência!
-Minha filha, obrigada por todo o apoio que me deu e continua dando, se não fosse você, não teria conseguido me manter de pé por todos estes anos, você foi a minha inspiração. Eu via você ali animada, então: Não posso desistir a Paula vem pra cá, e preciso ficar firme, obrigada por tudo!
Aquele abraço, cheio de lágrimas selou pra sempre a nossa amizade, nasceu um amor de mãe e filha ali que nada podia abalar.
-Pai pára aí naquela lanchonete que eu vou comer um lanche!
-Fernando, já está quase na hora do almoço, vamos almoçar em casa!
-Pô, nem um lanche eu posso comer sossegado! Não enche o saco, até isso você quer me controlar! Faz três anos que não como um lanche! Cê tá afim de me encher!
-Tá, bom! Deixa o almoço pro jantar e vamos comer o que você quiser!
-É, esse é meu velho, sabe o que é bom!
-E você Paula, não vai falar nada?
-Precisa falar alguma coisa?Você já decidiu e pronto!
-Vocês duas estão a fim de me perturbar mesmo!Deixa esta droga de lanche pra lá e vamos comer comidinha da mamãe!
-Filho não quero brigar com você justo hoje, só disse que fiz um almoço especial pra nós, em comemoração ao seu retorno, mas se você não quer, a gente vai a lanchonete, tá tudo bem.
-Pra quê, pra ficar falando na minha orelha o resto da semana, que fez um almoço e fui comer lanche, tô fora!
-Você é quem sabe Fernando, já está bem grandinho pra fazer as suas escolhas.
-E aí, vai na lanchonete ou vai pra casa?
-Vamos pra casa, depois eu vô .Essas duas aí só empatam. Querem controlar tudo!
O Fernando passou o caminho inteiro provocando a Mara, parece que ele quer que ela perca o controle, engraçado que eu nunca vi ele tratando a mãe deste jeito, é uma outra personalidade. Já tinha ouvido falar que algumas pessoas que retornam do estado longo do coma se tornam meio estranhas, algumas mais agressivas, mas eu pensei que isso jamais aconteceria com o Fernando. É impressionante a mudança.
-Meu, não tô acreditando, que você não me deixou comer no Mc, e faz peixe pro almoço, isso é almoço especial?
-Fernando pára com isso! Que grosseria! Sua mãe fez este almoço com tanto carinho pra você! Se não tem nada de bom pra falar, come e
fica com a boca fechada!Você está parecendo uma criança mimada!
-Nossa filho, em todos estes anos, você nunca me disse que não gostava de peixe! Sempre pensei que fosse sua comida predileta!
-Não falei que não gostava de peixe, só achei que ia ser outra coisa, pra comemorar, minha volta, depois de tantos anos sem comer uma comida decente.
-O que você quer comer, que eu faço.
-Nada, vou comer isso ai mesmo!
-Cadê minhas coisas, meu celular, meu computador, o carro o seguro deu outro?
-Eles pagaram, mas não compramos outro, a gente nem sabia se você ia sobreviver.
-É não contavam com isto, mas eu tô aqui vivinho da silva, pronto pra outra!
-Tá louco, nem por brincadeira, repita uma bobagem dessa!
-Ô pai, me empresta o carro que depois do almoço, vou dar um rolê.
-Acho melhor você descansar a tarde, ou então, pede pra Paula dirigir, assim não se cansa.
-Ah, dona Paula tirou carta? É, muitas coisas mudaram por aqui.
-Se você quiser a gente pode dar uma volta depois, passear um pouco, eu dirijo!
-De jeito nenhum, eu é que vou dirigir, pára de me tratar como se fosse um inválido, se quiser ir, eu dirijo, se não fica aí!
-Você é quem sabe só estamos cuidando da sua saúde.
-Agora eu sarei ninguém precisa cuidar mais de mim, tô ótimo! Vou ter que passar a vida inteira ouvindo sermão, vocês cuidaram de mim, já sarei, agora chega de ficar com esse lenga lenga na minha orelha!
-Mara vamos descansar um pouco? As chaves do carro estão lá na sala, juízo, hein mocinho!!
Depois do acidente foi muito difícil pra eu tirar carta, uma sensação muito ruim, de medo, mas depois, fui treinando, perdendo o receio hoje dirijo muito bem. Até ganhei um carro do meu pai, quando entrei na faculdade.
-Você terminou o ensino médio e já está na faculdade?
-Terminei, estou no primeiro ano de odonto. Lembra que combinamos de montar o consultório juntos?
-É, mais aconteceram tantas coisas....Não sei se eu quero mais ser dentista. Esse negócio de consultório, ficar cuidando da boca, cheia de cáries, doenças da gengiva, não sei se eu quero isto não!
-Como assim? Você vai desistir do seu curso?E eu?
-E você o quê? Faz a sua faculdade e vai ser o que você quiser! Tô falando que eu não quero, a vida é sua faz o que quiser!
-Você é um egoísta, desisti de tudo na vida por você, nem cogitei outras possibilidades, porque só importava me apegar aos nossos projetos pra continuar vivendo, os nossos sonhos é que importavam!
-Meu, acorda, parece que quem ficou em coma foi você! Os nossos sonhos ficaram enterrados naquela ribanceira. Não vem colocar peso sobre a minha cabeça que escolheu a faculdade por minha causa porque isso é problema seu, eu nem sei se quero continuar estudando, agora vou ser obrigado a continuar um curso que eu não quero mais por sua causa. Tem cabimento!
-Tem cabimento sim, você não pode continuar a vida achando que ela gira em torno do seu umbigo, existem outras pessoas além de você.
-Meu, chega dessa conversa chata, você tá insuportável, tá querendo estragar meu dia?
-Põe uma coisa na sua cabeça, aquele babaca que namorava com você, morreu lá naquele acidente, escafedeu, foi pros quintos do inferno, para de me encher com essa conversa chata, acabou. Se você quiser continuar comigo vai ser assim, esquece aquele outro cara, não existe mais, virei outra pessoa. Se quiser, vai ser assim.
-E aquele papinho furado que vocês me contaram lá no hospital que pararam as suas vidas pra cuidar de mim, era tudo mentira, porque, como você parou de viver por minha causa, se tirou carta, entrou na faculdade, você não parou nada, era só pra fazer uma média!
-E o que você queria? Que eu ficasse lá trancada no hospital esperando você acordar e se acordasse!
-Não, não queria isso, é que você me deu a entender que ficou lá o tempo todo!
-Não falei isso, você entendeu errado!
-Vai passear agora ou mais tarde, está cansado?
-Vamos, tô precisando dar uma esticada nas pernas, só mexia na hora da fisioterapia, estou meio enferrujado!
-Vamos a pé, ou de carro?
-Vamos até o centro de carro, a gente estaciona e caminha um pouco.
Então, vamos.
-Divirtam-se!Vocês voltam para o jantar?
-Não sei, qualquer coisa eu ligo.
Hoje foi o primeiro dia das nossas vidas depois do acidente. Só o tempo vai sarar as feridas, mas como dizia o poeta “ o show tem que continuar”.
A Mara voltou pra São Paulo. Retomou as aulas na escola. O Fernando ficou uns dias em casa sem fazer nada. Nesta semana ele volta pra faculdade. Espero que dê tudo certo. Pedi pra ele vir me buscar em casa. Uma desculpa para não deixar ele chegar sozinho na faculdade. Vai ser difícil. A turma dele já se formou. Ele não conhece ninguém mais.
-Meu, que inferno este trânsito!Estou a horas tentando chegar na faculdade, e a Paula inventa que quer ir comigo. Pô fica muito mais fácil ela ir com o carro dela. Que saco!
-Fernando? Tá chegando? a gente já está atrasado!
-Estou no trânsito, por que você não foi com o seu carro?Agora fica me enchendo que está atrasada!
-Tudo bem, amor, a gente entra na segunda aula!
-Falô, daqui a pouco eu chego. Tô perto, já!
Me senti um ET naquela faculdade, é como se eu fosse um fantasma. Virei um espetáculo de circo. Gente que nunca conheci veio falar comigo. Odiei fazer o papel de coitadinho. Todo mundo querendo se fazer de politicamente correto, querendo agradar o doentinho, que ficou três anos dormindo. Dá uma vontade de mandar todo mundo pra aquele lugar. Já não chega a merda da Paula e da minha mãe me tratando como criança, como se eu fosse um inválido. Até os professores ficaram cheio de dedos. Olha gente, o Fernando é o nosso aluno que esteve em coma durante três anos, se vocês puderem dar uma força pra ele se situar com as matérias. Eu não sou retardado, não preciso que ninguém fique me tratando como se eu fosse um imbecil. Lá vem a Paula.
-Fê, tudo bem?Como foi as primeiras aulas?
-Uma bosta, me senti um mico de circo. Um perfeito idiota.
-Nossa! O que houve?
-Se continuar essa putaria, todo mundo me tratando como um retardado, não vou vir mais pra essa faculdade!
-E vai fazer o quê abandonar tudo?Como você pensa em se sustentar. Quem é que vai pagar suas contas?Você não acha que já abusou demais da boa vontade do seus pais?Você não é mais criança! A gente vai se casar e viver do quê, se você não quer nem terminar a faculdade?Eu tinha outros planos para o meu futuro profissional. Estou fazendo odonto por causa dos nossos sonhos de trabalhar juntos, montar um consultório!E você vem me dizer que não quer mais!
-Eu quero que você se dane, fez odonto porque quis, agora não vem jogar na minha cara não, eu
não sou seu filho não, pra ficar me dando sermão, vai se catar!
-E vai embora de ônibus, porque eu não vou te levar!Vai a pé!O moleque aqui não ta afim de ficar na faculdade, vou embora!
-Fernando, onde você vai?Espera aí, me desculpa!
-Solta o meu braço, acho melhor a gente dar um tempo, eu não conheço mais você, é uma estranha!
-Fê, não faz assim! Volta pra sala ainda tem duas aulas, depois a gente vai embora.
-Meu larga do meu pé, não quero mais ninguém falando o que eu devo fazer. Chega! Daqui pra frente eu é que vou decidir o que eu quero. Me esquece! Tchau!
-Mara?O Fernando chegou ai?
-Que houve, Paula? Você está chorando?
-É a gente brigou, ele não quer mais namorar comigo, diz que não
me conhece mais! Que eu sou uma chata!
-Calma Paulinha, ele devia estar nervoso com a volta a faculdade, receio da reação das pessoas, tem um pouco de paciência com ele. Daqui a pouco ele se acalma, e vocês conversam, um amor tão lindo como o de vocês não acaba assim de uma hora pra outra.
-Mara pra mim já deu, cansei de ficar correndo atrás do Fernando, e ele não reconhece nada do que faço. Não sei o que aconteceu, mas este Fernando que voltou não é o meu namorado, o homem que escolhi pra dividir a minha vida. Que fiz planos, queria casar, ter filhos, trabalhar juntos. Este aí, é um estranho. Até o jeito dele falar mudou. Você precisa ver a grosseria dele comigo na faculdade, só porque falei pra ele não desistir. Até palavrão ele tá falando agora. Eu nunca vi o Fernando falar com aquela
vulgaridade, usando gírias. Me senti horrível. Ele é outra pessoa. Foi um grosso. Me mandou vir embora a pé, me xingou.
-Pra mim chega, não quero mais nada com ele, vou cuidar da minha vida! Não é esse o marido que quero , um grosseirão!
-Paula, meu amor, não toma decisões com a cabeça quente, espera um pouco, o Fernando está passando um momento muito difícil, tem um pouco de paciência, o médico explicou que as pessoas que passam por um trauma, fica meio transtornadas mesmo.
-Pra mim chega Mara! Cansei de ficar bancando a babá do Fernando. Deixa ele decidir a vida dele e arcar com as conseqüências, ele não é criança,já tá bem grandinho! Se precisar de alguma coisa me liga. Nem fala pra ele que eu liguei.
-Paula, depois de tanto sacrifício que você fez pelo Fernando,
deixou a sua vida, pra estar com ele, num momento tão difícil, vai desistir agora, abrir mão dos seus sonhos. Ele é um homem de Deus, que você escolheu pra ser o seu marido.
-Me desculpa Mara, ele é seu filho, mas este Fernando aí é um estranho, nem na igreja ele quer ir mais. Já faz um tempão que ele não vai ao culto, inventou que as pessoas ficam olhando pra ele, que se sente mal com isso, arrumou uma desculpa pra não ir mais!
-É ele me falou que não está querendo ir. Mas, é só uma fase, daqui a pouco ele volta a ser o nosso Fernando.
-Longe da igreja, longe da família, da namorada, vai ser muito difícil, ele está se afastando cada vez mais!
-Deixa eu desligar que vou trabalhar ainda! Fica na paz.
-Você também, não desiste dos seus sonhos, tá! Deus está no controle de tudo!
-É eu sei, mas eu vou dar um tempo, deixar ele um pouco de lado, vou viver a vida um pouco. Sair com as minhas amigas. Viajar. Recuperar o tempo perdido. Estou vivendo a vida do Fernando há muito tempo, esqueci a minha, amadureci a força neste período, quero viver um pouco essa vida de adolescente sem muitas responsabilidades.
-Só toma cuidado. Vou orar pra que vocês se entendam, e que Deus coloque a cabeça do Fernando no lugar!
FERNANDO
-E aí cara, firmeza, você é novo aqui?
-É, mais ou menos, fiquei fora um tempo, tô voltando agora.
-É dos meu, já tô me formando, venho aqui só pro velhos não ficá enchendo o saco, no final do semestre, fico de DP, aí eu mudo de curso. Por enquanto eles tão engolindo. Tem uma turma da hora aqui. A gente vem assiste uma aula e vaza, tem um boteco aqui do lado, a gente fica lá tomando uma cervejinha, batendo um papo. Os velhos agora me puseram pra estudar de manhã, é o ó. Mas se eles pensam que vai mudar alguma coisa tão enganados. Vi você quebrando o pau com aquela menina do 6º semestre, ela é mó gostosa. Os caras aqui pagam um pau pra ela. E ela é bem difícil. Já fizemos até uma aposta pra ver
quem conseguia fica com ela. Mas ela dispensou todo mundo. È fiel ao namorado. É uma babaca!
-É minha namorada, a gente teve uma briga.
-Oh cara, foi mal, eu não sabia. Desculpa aí. Se quiser, esfriar a cabeça, nós estamos indo pro boteco. Aparece lá. Toma umas cervejinhas. Fica de boa. Esquece a briga.
-Falô, mas eu não bebo, não curto essas paradas aí.
-Não bebe? De que planeta que você veio?
-Eu não estou muito legal, vou pra casa!
-Bom motivo pra você ir com a gente. A galera é muito legal.
-Eu não sei seu nome. O meu é Fernando.
-E o meu Fábio. Se mudar de idéia, aparece lá.
-Beleza!-Falô!
-Meu, vocês não vão acreditar!Tava conversando com
um cara hoje, e eu vi antes, que ele tava quebrando o maior pau com aquela Paula, aquela gostosa do 6º semestre de odonto, que a gente fez a aposta aquela vez. Aí eu descobri que ele é o namorado dela. O cara é um otário. Chamei ele pra vir tomar umas cervejas, o cara não bebe. Dá pra acreditar?
-Nunca vi ela com ninguém aqui na faculdade.
-Ele começou hoje, acho que tá no 4º semestre de odonto.
-Que bonitinho, o casalzinho fazendo o mesmo curso.
-Não zoa não, o cara é gente boa.
Voltar pra casa foi muito mais fácil. Devia ter ido com os caras lá no boteco, ver como é que é, eu nunca fui. Outro dia eu vou. Sem aquela chata da Paula me dizendo o que eu devo ou não fazer, vou conhecer um pouco as coisas.
-Filho?Você chegou?
-Cheguei! Saí um pouco mais cedo!
-Não teve aula?
-Teve, eu que estava um pouco cansado.
-Ah, tá tudo bem com você?
-Não precisa nem continuar, a Paula já te ligou?
-Por quê, aconteceu alguma coisa?
-Conta outra, dona Mara!Pela sua cara, ela já veio chorar as pitangas pra você.
-Não vou mentir, ela ligou, estava muito triste, disse que você não quer namorar mais com ela, é verdade isso?
-É e chega dessa estória, não vou ficar fazendo relatório.
Ela já te contou. Chega de ficar fazendo perguntas, cada um vai cuidar da sua vida, agora!
-Fernando, pensa bem, uma namorada igual a Paula, mulher de Deus, companheira, permaneceu fiel a você por todos estes anos, não se encontra uma menina destas por ai não, você pensa direito, porque depois pode ser tarde. Lá fora tá cheio destas
periguetes, mas elas não tem nada para oferecer a você além do corpo, e você vai perceber que uma família não se constrói só na cama, tem outros detalhes muito mais importantes, como fidelidade, amor, respeito, companheirismo, Deus. Depois que entrar numa roubada, não se esqueça que eu te avisei.
-Pode parando, que eu não vou ouvir nada. Chega de Paula, chega de sermão, agora quem vai cuidar da minha vida sou eu!
-Alô? Mara? Tudo bem? É a Paula!
-Oi Paula, como vai você tudo bem em casa, sua mãe, seu pai?
-Tudo Mara, e você e o Paulo, estão bem?
-Estou ligando pra você porque queria comentar algo sobre o Fernando. Mara ele está o tempo todo com um menino da faculdade o Fábio, é daqueles que o pai e mãe deram demais e esqueceram de ensinar a viver. Ele só vai a faculdade, assiste uma aula, atrapalha tudo que pode e vai para o bar beber. Estou muito preocupada com o Fernando, ele nem olha na minha cara. Essa turma que o Fernando está é meio barra pesada, alguns usam drogas, bebem muito, como ele está meio desorientado tenho medo que eles o influenciem. Conversa um pouco com ele veja se consegue colocar um pouco de juízo na cabeça dele.
-Ah Paula, meu filho está tão estranho, nem o reconheço mais.
Chega tarde, cheirando cigarro e álcool, não sei se ele está bebendo, estou vendo a hora de acontecer uma nova tragédia. Quando falo alguma coisa, ele diz que ele nunca fez nada de errado sempre andou conforme a igreja determina, e cadê Deus pra cuidar dele, na hora que mais precisou, ele ficou só. Que recompensa ele teve por fazer tudo que a igreja mandava, ficar três anos em coma, perdeu 03 anos da vida dele, ele não consegue enxergar o milagre que ele viveu!
-Mas vamos deixar de falar do Fernando, quero saber de você, o que está fazendo?
-Nada de mais, Mara, só na faculdade, às vezes eu saio com as minhas amigas, vamos ao shopping, a líder do depto infantil me convidou para dar aulas na escolinha da igreja, vou começar no domingo!
-Que bom Paula, é isso mesmo, aos poucos você vai colocando a sua vida no lugar!
-Oro todos os dias para que Deus coloque a cabeça do Fernando no lugar e ele perceba a grande burrada que está fazendo.
-Mara eu aos poucos estou me desligando do Fernando, estou ainda muito chateada com ele, não sei se quero ele de volta, ele me disse coisas que me magoaram muito.
-Há um tempo para todas as coisas e se for da vontade de Deus, Ele vai sarar todas estas feridas antes de vocês retomarem o relacionamento, não desisti de ser a sua sogra, viu mocinha!
-Mara não fala nada para o Fernando sobre o que te contei, ele vai saber que fui eu.
-Pode deixar eu não falo nada, tem coisas que não adianta ficar falando, estou naquela fase de só orar.
-É melhor, vou desligar, estou indo para faculdade, hoje a minha aula começa mais tarde, beijos fique com Deus.
-Beijos, Paula, fique na paz.
Hoje eu vi o Fernando com aquele Fábio indo para o bar, eu estava chegando e ele saindo, olhou pra mim com um ar de desprezo, como se eu fosse uma estranha. Fico com tanta raiva de pensar que passei 03 anos quase da minha vida chorando por esse imbecil pra ele fazer isso, aposto que é só para aparecer pra esses idiotas. Ai que raiva!
Peço sempre a Deus pra tirar estes sentimentos do meu coração, mas cada vez que vejo o Fernando ele retorna com uma força incontrolável.
Hoje eu vi a Paula quando estava indo pro boteco com o pessoal da faculdade, fingi que não vi, porque ela me olhou de um jeito, como se o fato de vir com a galera pra cá
fosse um crime. A toda santa se acha no direito de condenar e julgar segundo os seus padrões de santidade. Não vejo problema nenhum em vir pra cá com os meus amigos, eu não bebo, os caras ficam me zoando por causa disso, mas eu só fico lá com eles de boa, não tem nada demais. Amanhã vou numa boate, só entra quem tá na mesma vibe, o Fábio descolou uma pulseira do camarote vip. Falaram que é da hora, bem diferente daqueles programinhas babacas dos jovens lá da igreja. Tô fora!
-Meu a boate é show, um monte de mina top, bebida a vontade, hoje vou ter que experimentar umas, saber como é que funciona o negócio, vou tomar umas cervejas, vai ser meu primeiro porre.
-Vai lá Fernando! Mostra que você não é um babaca, bebe aí!
-Eh, tá me tirando, hoje eu vou experimentar esse negócio!
-Só a bebida ou você quer umas coisinhas, dá pra descolar, ai você vai ver o que é viagem.
-Não, essas paradas aí eu tô fora, vou só tomar uma bebida.
-Tem uns coquetéis ai pra começar! Vamo tocá o terror! A noite tá só começando!
-Ei, dá um coquetel desse ai!
-Meu nem parece que tem bebida alcoólica, é gostoso.
-É não se empolga não, depois vai tê umas parada aí com umas minas, já tá armado os esquemas, se você tiver bêbado não vai aproveitar!
-Pô, Fernando, tô desacreditando que você não vai na parada. Larga de ser filhinho da mamãe! Você é um otário no melhor da festa você vai pulá fora!
-É eu vou embora, eu não tenho costume de sair minha mãe deve tá surtada já. São 04 da manhã.
-Meu a noite é uma criança, os cara tão tudo doido. Vamos sair por ai!
-Tô de boa, eu tô meio zoado, não tô acostumado a beber!
-Falô, vai pela sombra!
-Ufa! Foi por pouco, tá tudo apagado, eles já dormiram!
-Fernando? É você? Tá tudo bem?
-Pô, mãe, sê tá acordada ainda?
-Você nunca chegou tão tarde! Fiquei preocupada! Você veio dirigindo esta hora? Você está bêbado?
-Fernando você está querendo me enlouquecer, meu filho, o que você está fazendo com a sua vida, te ensinei o caminho certo e você está no mundo perdido. Nunca na minha vida pensei em ver um filho meu bêbado, não falta mais nada!
-Eh véia, não surta não, tá tudo beleza, foi só uma bebidinha! Deixa o sermão pra amanhã.
-Você guardou o carro?
-Não larguei lá na rua, daqui a pouco eu vou sair.
-Vai pra onde Fernando, você acabou de chegar!
-Umas parada aí com os caras da faculdade, vão fazer uma festinha na casa dumas mina aí.
-Essa pessoa tem nome? Você sabe quem é?
-Sei lá quem é!
-E como você vai pra casa de uma pessoa que você não conhece?
-Relaxa, é tudo gente boa!
-Alô, Fernando? Tá afim de ir numas paradas aí amanhã?
-Que parada?
-Tamô precisando de um motorista, tem uns caras que tão sem carro!
-Vai ser amanhã de tarde, dá pra ir?
-Vamô descolá uma grana, é trampo firmeza!
-Tá, eu vou, que que eu tenho que fazer?
-Nada, é simples, só leva lá e espera a gente no carro, só vamo fazê um corre rapidinho!
-Firmeza, amanhã a gente se fala, chamo você no whats up!
-Vou dormir um pouco, tô meio zuado!
-Falô!
-Aí, achei o motorista que tava faltando, pra parada!
-Se for quem eu tô pensando não vai dar certo! Aquele Fernando é um mané, o cara é crente, tá doido!
-Calma, num falei nada da parada, só falei que a gente precisava de uma carona!
-Aquele cara é um boca aberta, vai botá a gente numa roubada! E se pegá a gente nós tamo fudido!
-Que porra é essa? Não confia mais no brother, eu sô teu irmão! O cara é um vacilão não vai desconfiar de nada! Tá afim de tocar o terror na mamãe e na ex namorada! Se a
casa cair, a gente larga ele com o B.O.
-É um otário mesmo! É bom cair pra ficar esperto!
-Depois a gente combina a hora certinha!
-Meu manda ele fica longe do bagulho, é bem capaz de chamar a polícia se vê alguma coisa errada!Otário!
-Firmeza, tamo junto!
-Falô, irmão, beleza!
“ Fernando vamo sair umas 04 horas, dá pra me pegar umas 3:30, o João vai direto, a gente só vai buscar uma mercadorias, tudo certo? “
“Ok. Daqui a pouco passo aí, acabei de acordar.”
-Nossa esses caras são gente boa mesmo, a gente nem se conhece direito e eles já me chamam pra uma parada, é bem fácil só vou ser o motorista.
-Mãe, tô saindo!
-Onde você vai, Fernando?
-Vou fazer um fazer favor para uns caras que eu conheci e depois vou numa festa, acho que é um churrasco.
-Que favor?
-Mãe, se tá ficando embaçada, larga do meu pé!
-Estou com o coração apertado, não sai não, Deus tá me dizendo que alguma coisa de muito ruim vai acontecer com você, fica aqui em casa, vamos ver um filme.
-Esse seu Deus aí não te avisou do acidente não, podia ter poupado 03 anos da minha vida. Tô de bôa dessa história.
-Meu Deus, estou tão aflita, acampa os teus anjos ao redor do Fernando, livra ele de todo mal, eu sei que algo ruim vai acontecer, cuida dele, eu o entrego nas tuas mãos, faz aquilo que o senhor achar melhor, a sua vontade, não a minha. Eu quero o melhor para meu filho.
...Vou falar com o pai dele, quem sabe ele escuta mais, já tentei de tudo, mas não tá adiantando nada.
-E aí brother, chegou cedo, a galera tá chegando, já vamô sair.
-Onde que é o negócio que vcs vão fazer, é uma loja?Vão fazer algum trabalho lá ou é uma firma?
-É um estabelecimento comercial, vamo fazer o trampo e cair fora, a festa já tá esquentando.
-Falô, quem que vai comigo?
-Uns 03 chegados meus, irmãos, gente boa.
...Meu, num tô gostando desse negócio, vai dar merda, tô com um pressentimento ruim, mas se eu falar que não quero ir os caras vão me chamar de otário, de filhinho da mamãe, de crentinho, acho que estou impressionado com as palavras da minha mãe, oh boca!
-Fernando, os caras chegaram! Vamo lá!
...Jesus, eu tô ficando com medo, olha a cara desses amigos do
Fábio, se a polícia passar aqui vai levar todo mundo em cana, tem cara de bandidos.
-E aí brother, firmeza!
-Oi, entra aí, tudo bem?
-Até onde vou dar carona pra vocês?
-Ah, carona, até ali, vou falando o caminho, pode ir.
-Dá um tempo aí que a gente já volta, é coisa de 15/20 minutos.
-Trampo rápido né.
-É, só vamo pegar umas mercadorias. Rapidinho.
-Meu, como é que você, e o João arruma um otário desses para fazê esse corre. O cara tá achando que nós vamos trabalhar!
-Ele é um otário, deixa ele acreditando nisso, se eu falasse a verdade ele não ia vir.
-Tudo certo aí, tudo dois fica na espreita, de olho no que tá rolando lá dentro se der treita, corre pra ajudar, se a casa cair, vaza, é cada um por si.
-Já tá tudo no esquema, é só chegar, meter os canos, cai pra cima, e bôa. O negócio tem que ser rápido.
-Vamo, lá.
-Todo mundo na moral, quietinho, é um assalto, perdeu playboy, passa a grana, rápido, o dedo tá coçando, não tenho nada a perder não.
-Vamo, todo mundo pra trás, sem bancar o herói, senão tá morto.
-Vamo sua vagabunda, deixa a grana aí, deita no chão, se mexer tá morta.
-Cadê a grana, fala aí onde tá a grana?
-O movimento foi fraco hoje, só tem essa, não tem mais.
-Sua, vaca! Eu tô falando que eu vou dar um tiro na sua cara se não arrumar mais dinheiro.
-Moço, pelo amor de Deus, eu não tenho mais dinheiro aqui, eu tenho filhos, vão embora!
-Tem alarme nessa bagaça aqui?
-Não, não tem não!
-Se a polícia chegar vou levar uma meia dúzia pro cemitério, cadê a grana!
-Já tá tudo ai, vão embora!
-Querendo me ver pelas costas, vamos sair quetinho, se alguém levantar pra chamar a polícia eu volto, conheço todo mundo aqui, meto uma bala na cabeça, pá num vê nem o grito.
-Vamo sair na moral. Todo mundo na boa. Sem treta.
-Corre, pega o carro e encontra a gente na festa, leva a grana pro otário não perceber!
-Nossa, já voltaram, foi rápido!
-Vaza, que nós tamos atrasados, pro churrasco!
-Mas não era no final da tarde?
-Vamos, vamos, que vai começar mais cedo!
-Nossa, acho que está tendo uma blitz ali na frente, tem um monte de carros de polícia.
-Para aí que nós vamos descer aqui!
-Ué, mas vocês não queriam uma carona pro churrasco, a gente se encontra lá.
-E aí galera, meu aqueles caras que você mandou eu dar uma carona são muito estranhos, fiquei lá esperando, eles entraram no carro, andou um quarteirão me mandaram parar e saíram vazados.
-Eles são assim mesmo, mudaram de idéia.
-Eu fiquei até achando que eles estavam com medo da polícia.
-Que nada, impressão sua.
-Vai uma cervejinha, aí?
-Quero, achei o gosto meio ruim, vou ter que aprender a gostar.
-Se quiser outras coisas, tem umas paradas mais fortes rolando lá dentro. Vai lá moleque, se joga!
-Tô sossegado, vou ficar por aqui mesmo.
-Oi, posso sentar aqui com você, como é mesmo seu nome?
-Oi, pode, senta aí, eu sou o Fernando.
-E eu sou a Andressa, tá sozinho?
-Não, tô com uns amigos.
-Não estou falando desse tipo de companhia, quero saber se está solto na pista, tá rolando umas brincadeirinhas lá dentro e preciso de um parceiro.
-Que tipo de brincadeira?
-Bobinho, nada que você não goste.
-Eh Andressa, já dando o bote, cuidado que esse aí não é muito chegado nessas coisas.
-Fiquei curiosa, você não frequenta estas festas?
-Que gracinha, vou adorar mostrar o mundo pra você.
-O que que tem lá dentro?
-Sê tá de brincadeira que você não sabe!
-Não, eu sou evangélico, nunca frequentei essas festas.
-E o que você está fazendo aqui? Com essa turma barra pesada?
-Tô dando um tempo de igreja, quero curtir um pouco.
-Você está no lugar certo, vamos nos divertir muito, aqui ninguém é dono de ninguém, sem regras, nada é proibido, só o prazer é que conta.
Rola muita droga, sexo, bebidas e muita, muita pegação.
-Ah, tá. Eu não curto essas paradas ai, vou ficar por aqui mesmo.Se quiser me fazer companhia, fica aí.
-Eu tô passada, a festa fervendo lá dentro e você vai ficar aqui?
-Tô de boa.
-Eh Fernando sai fora dessa aí, não é pro seu bico, é uma periga das boas. Vai devagar.
-Você conhece esses caras?
-Conheço, são meus amigos.
-E você deixa eles chamarem você de periga, assim?
-Num tô nem aí, deixa eles falarem.
-Vou buscar uma coisa mais forte pra gente beber.
-Eu não quero, vou dirigir. Não tenho hábito de beber.
-Estou ficando apaixonada, você é um fofo, só falta me falar que é virgem!
-E se for, tem algum problema?
-Nenhum, sou uma ótima professora, vou ensinar a você o que é bom!
......Estou preso, fazem 06 meses que não vejo a rua, penso em cada minuto que perdi preso neste lugar, tenho dúvidas se existe um inferno pior do que esse, tenho tempo, muito tempo para pensar no que fiz da minha liberdade, ou como a perdi. Fui descendo, um degrau por vez em direção ao inferno, mas não é aquele inferno da bíblia, é este que estou agora, a minha vida não é nada, deixei de existir, a maldade é tão grande aqui dentro, que você vai tendo os seus sentimentos cauterizados, queimados para o mundo lá fora, o único pensamento é se manter
vivo até o dia de sair, e esse dia não chega. Estou infeliz, maldigo o dia em que deixei Jesus para viver uma vida diferente, cheia de pecados, de promiscuidade, mas cheia de dor, de sofrimentos. Sinto saudades da minha vidinha simples de antes, ao lado da Paula, dos meus pais, do meu cachorro. Sinto falta da ternura, da pureza dos meus sentimentos, da simplicidade. Tenho dúvidas se depois de tudo isso eu consiga meu mundo colorido de volta. Aqui é tudo marron e cinza, não tem cores. Até as pessoas são escuras, não por causa da cor da pele ou do cabelo, mas por causa dos seus sentimentos. O mal entra na vida dessas pessoas de uma maneira tão intensa que eles se tornam como bichos, a única coisa que importa é sobreviver, nem que para isso tenha que matar ou morrer. Estou morrendo um pouquinho todos os dias. Triste.
Sinto saudades de tudo, até de ir na padaria comprar pão. Bobagens. Tudo o que consigo pensar são bobagens. Faço planos. Resgato sonhos antigos. Quero a Paula comigo. Será que ela vai me perdoar. Será que ela encontrou outro amor. Ela tem mil motivos pra não querer ficar comigo, mas eu vou conquistá-la de novo.
A Andressa foi o instrumento usado pelo diabo para me fazer descer as profundezas do inferno. Linda. Cara. Sexo. Vazia. Promíscua. Vulgar. Vagabunda. Traidora. Fui enganado. Sofrimento. Tristeza. Os amigos eram bandidos. Me usaram. Fui preso. Sobrou o vazio. Me senti um lixo. Aliás, somos um amontoado de gente podre, doente, uns morrem, outros apodrecem mais. Mas eu não vou aceitar este destino, Deus vai me ajudar a sair daqui e resgatar a minha vida. A vida que abandonei,
que Deus me deu de volta e deixei escapar. É o que me mantém vivo, é a certeza de encontrar a Paula e pedir perdão, retomar os nossos sonhos. Esta escapada me deixou marcas profundas, e só o amor poderá apagar da minha memória este sofrimento. Estou abandonado aqui. Minha mãe prometeu e cumpriu, que deste lado eu estaria sozinho. Que a escolha seria minha. Ela só não contava que Deus não desistiria de mim. Segurou as minhas mãos nos momentos mais difíceis e me resgatou. Ela me visitou algumas vezes. Não responde quando pergunto da Paula. Tristeza. É o que vejo nos seus olhos por me ver aqui. Estou quase saindo e vou ter a vida inteira para ganhar o seu perdão. Os seus olhos não tem brilho. Estão apagados. Mas eles vão brilhar de novo. Tenho fé. Vou agarrar esta segunda chance e entrar de novo na minha vida. O
tempo aqui passa muito devagar. Um dia tem quinhentas horas. Sombrio. Preciso ficar firme. De pé. Como um soldado enfrentar as diversidades de cabeça erguida. A única dúvida é: será que a Paula vai me esperar.
Nunca prestei atenção na chuva. Agora presto atenção em cada pingo. No barulho. As gotas brilham quando batem no chão. A chuva é colorida. Cheia de cores. De possibilidades. É assim como uma chuva que estou me sentindo. Limpa tudo. Arranca as folhas velhas. Faz germinar a semente. Penso às vezes que vou enlouquecer com todas estas bobagens. Mas daí percebo que vida é feita destas coisas, destes sonhos pequenos, destas coisas simples, do amor singelo, do abraço antes de sair, do beijinho quando chega. Queria saber onde anda aqueles meus amigos, não aqueles que me enfiaram nesta
roubada, mas aqueles que compartilhavam a vida comigo, será que pensam em mim. Vou procurar um por um e dizer a eles o quanto foram importantes na minha vida. Como é bom ter amigos de verdade.
Vida. Mãe. Pai. Paula. Amigos. Igreja. Faculdade. Sonhos. Família. Projetos. Deus.
Me espera aí que estou chegando, vida.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Mulher que é atribulada de espírito

Mulher que é volúvel

Feliz e bem aventurado o homem que tem uma família